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O memorioso



Tudo é imaginável no terreno da literatura. Lugares como a ilha da Atlântida ou o castelo de Kafka, criaturas como Frankenstein, Gregor Samsa, Sherlock Holmes e Dom Quixote, são apenas alguns exemplos conhecidíssimos que atestam o fulgor imaginativo de que a literatura é constituída. Desde o seu início que a literatura "teima" em agarrar-se aos terrenos do invisível e do inverosímil, o que nos possibilitou o conhecimento de que ao alargarmos os limites da imaginação (penetrando no terreno do inimaginável) estamos também a alterar a estrutura da realidade. É factual que o imaginário intromete-se sempre na realidade, por vezes até de forma brutal, como é o caso da história das religiões, por exemplo.

Em 1942, Jorge Luis Borges publicou um pequeno conto intitulado Funes, o memorioso,  no qual procede a um portentoso exercício de imaginação criando um ser humano capaz de memorizar tudo, literalmente tudo. O "herói" desta narrativa é um jovem chamado Ireneo Funes, rapaz "de cara taciturna de feições índias, e singularmente distante , por trás do cigarro", também conhecido "por algumas estranhezas como a de não se dar com ninguém e a de saber sempre as horas, como um relógio." A atmosfera deste conto é lúgubre desde o início: "Em 87 voltei a Fray Bentos. Como é natural, perguntei por todos os conhecidos e, finalmente, pelo «cronométrico Funes». Responderam-me que o tinha derrubado um cavalo branco na quinta de São Francisco, e que ficara paralisado, sem esperança." Em consequência da queda do cavalo, Ireneo Funes obtém magicamente uma espécie de "moeda de troca" pela catástrofe sucedida (catástrofe essa que o deixa quase indiferente), nomeadamente a capacidade de percepcionar o mundo exterior e de memorizar o mais pequeno pormenor de uma forma absoluta e infalível. Como o próprio Funes diz em conversa com o narrador: "A minha memória, senhor, é como uma lixeira." E ainda: "Mais recordações tenho eu sozinho do que devem ter tido todos os homens desde que o mundo é mundo." Os dotes de percepção e de memória são absolutamente espantosos em Funes: "Sabia as formas das nuvens austrais da alvorada de 30 de Abril de 1882 e conseguia compará-las na lembrança com os veios de um livro em pasta espanhola que só vira uma vez e com as linhas da espuma que um remo levantou no rio Negro na véspera do combate do Quebracho." Funes, "não só se lembrava de cada folha de cada árvore de cada monte, como também de cada uma das vezes que a tinha notado ou imaginado." Poderia multiplicar os exemplos sobre as façanhas de Ireneo mas creio que aqueles que apresentei são mais que suficientes para apreendermos a atmosfera deste conto. No final do conto Funes, o memorioso, intuímos facilmente as ideias de Jorge Luis Borges sobre o tema da memória. Se por um lado existe um lampejo de admiração de Borges pela memória descomunal de Ireneo Funes, o certo é que a tónica predominante desta narrativa é claramente de pesar. Observações como "a sua condição de eterno prisioneiro", "o infeliz Ireneo" ou ainda "o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente preciso", são de molde a atribuirmos um carácter funesto aos dotes sobre-humanos do protagonista.

É claro que a realidade não nos brinda com seres fantásticos como Ireneo Funes, no entanto, este texto de Borges tem o condão de nos demonstrar a relevância da tríade memória-esquecimento-passado na vida de todos os seres humanos, fazendo-nos reflectir em como seria a existência caso possuíssemos uma memória absoluta. O resultado desta reflexão surgiu-me ainda antes do fim da leitura, através de uma sensação de desconforto que está subjacente a todas as representações do excesso. A existência de uma memória mastodôntica é algo que nos desorienta profundamente, tal como tudo o que é excessivo. Penso muitas vezes na fraqueza da memória humana. O que é feito dos meus desejos, angústias, sensações e pensamentos da minha infância? Como aceder à paisagem mental daquilo que fui? Quando me esforço para reconstituir um episódio da infância constato melancolicamente a pobreza dos materiais com os quais tento reconstruir o meu passado. É absurdo que seja assim. Há todo um reino de recordações que se encontra soterrado na cave mais profunda do nosso cérebro, cave essa na qual nenhum de nós consegue entrar. Ora, o desconhecimento daquilo que fomos torna-nos tão estranhos aos nossos próprios olhos como aqueles povos extintos que figuram nos livros de história e que hoje temos dificuldade em entender. E no entanto, é indesmentível que a conservação da espécie humana só é possível graças à inexistência de seres como Ireneo Funes, ou seja, são as fraquezas e limitações da nossa memória que possibilitam a continuação da odisseia irrepetível da humanidade no universo. Kierkegaard está cheio de razão quando afirma que a vida só pode ser vivida olhando em frente. Sim, o que aconteceria se o passado -através de uma memória absoluta - fosse capaz de estender a sua sombra sobre o presente, deixando de ser esse palco escuro onde é raro haver movimento? Certamente que conheceríamos somente o caos, o desespero,a alienação e a inumanidade, tal como inferimos a partir da alegoria criada por Jorge Luis Borges em Funes, o memorioso.

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