O meu único arrependimento na vida é não ser outra pessoa, disse Woody Allen. Numa época em que a auto-adoração e o narcisismo imperam, não é socialmente aceitável ouvir alguém que confessa o seu desagrado por não ser diferente daquilo que é, por não ser outra pessoa. A frase "ama-te a ti mesmo" não é uma mera banalidade à qual foi concedido o estatuto de mandamento secular. "Ama-te a ti mesmo" é um dos sinais identitários que melhor caracterizam os nossos tempos. No entanto, creio que o lamento de Woody Allen é importante, pois toca num ponto central da psicologia humana- a relação tempestuosa do indivíduo consigo mesmo.
Por muito resistente que pareça o verniz que cobre e encobre os comportamentos quotidianos da era contemporânea, o certo é que continua a ser tremendamente difícil aceitar ser o que se é. Não foi à toa que Albert Camus escreveu que "o homem é a única criatura que se recusa a ser o que é". Existe em nós um sentido instintivo de revolta por termos sido enviados para um labirinto- o labirinto do eu, da individualidade- do qual não é descortinável qualquer saída. Corpo e consciência são-nos dados à nascença e com eles temos de permanecer até ao fim, sempre iguais, sempre os mesmos. Todas as tentativas de fuga de nós mesmos são circulares, meros "passos em volta". Por vezes, podemos parecer omnipotentes e livres, mas é um logro, dado que não conseguimos deixar de ser fiéis a nós mesmos.
Existem inúmeros casos paradigmáticos (especialmente na arte) que ilustram o desejo de evasão do eu, mas o mais conhecido e flagrante talvez seja o de Fernando Pessoa. Na verdade, o que é a heteronímia pessoana senão uma tentativa de escapar do eu, criando uma galeria de indivíduos totalmente diferentes entre si para a qual Fernando Pessoa migrava sempre que se sentia asfixiado pelas grades do seu eu?
Contudo, podemos olhar para esta questão de um ângulo diferente. No livro Pensamentos, Giacomo Leopardi- famoso escritor e filósofo italiano- reflecte a certa altura sobre a temática de querer ser ou parecer o que não se é. Para Leopardi, a origem do ridículo está directamente relacionada com o desejo de parecer ou ser o que não se é. Segundo o italiano, características como a pobreza, a ignorância, a doença ou a velhice não são, em si mesmas, ridículas; o ridículo apenas surge quando o pobre se arma em rico, o velho em jovem, o doente em são e o ignorante finge ser instruído. A tentativa burlesca de esconder a realidade e o esforço posto em mostrar-se diferente do que se é, são os responsáveis pelo ridículo. Como diz Leopardi, " [...] não são os nossos defeitos ou desvantagens que são ridículos, mas o cuidado com que os tentamos ocultar, e querermos agir como se não os tivéssemos".
Muito bom.
ResponderEliminarAdorei o texto na íntegra.
ResponderEliminarMuito obrigado. Fico contente que tenha gostado.
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