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Excesso de realidade

The Literary Digest, Studying French in the Trenches, 20 de Outubro de 1917

A espécie humana não pode suportar muita realidade, escreveu o poeta inglês T.S.Eliot. Ele tem razão. Quando, por qualquer razão, esta frase vem ter contigo, penso imediatamente no problema do sofrimento humano. Emil Cioran observou que o que irrita no desespero é “a sua legitimidade, sua evidência, sua documentação: é pura reportagem”. Isto pertence ao domínio dos factos, no entanto, é indesmentível que não existe praticamente ninguém que aceite o sofrimento de forma totalmente pura. Aqueles que aceitam o sofrimento com pureza caminham com a cruz em direcção à auto-destruição. Podemos dizer que morrem devido ao excesso de realidade. Contudo, a maior parte das pessoas não é assim, pois rebela-se contra o sofrimento, transformando-o. Os métodos usados para transformar o sofrimento em algo diferente daquilo que ele é na sua essência são inesgotáveis, mas todos eles se propõem a alcançar o mesmo objectivo – conferir irrealidade ao sofrimento.

Paul Fussell, no seu estudo sobre as batalhas de trincheiras da Primeira Guerra Mundial (The Great War and Modern Memory), explicou que o perigo envolvido nas operações militares faz com que os soldados que nelas participam olhem para o mundo que os envolve de um modo teatral. Segundo ele, a natureza impensável, absurda, grosseira, burlesca e cruel da guerra faz com que os soldados não consigam entender a guerra como um acontecimento pertencente à “vida real”. Ou seja, a teatralização da guerra acaba por ser uma estratégia que assenta na fuga psíquica do indivíduo em direcção a um lugar provido de razão e de sentido. Não é indispensável ter participado numa guerra para compreender a argumentação de Paul Fussell. Todos nós, nas “pequenas batalhas” que travamos quotidianamente, julgamos estar a actuar num palco quando somos trespassados pela lâmina inoxidável do sofrimento. Tomemos como exemplo o caso da humilhação. Quando nos sentimos humilhados (não interessa o agente da humilhação) somos confrontados com uma "situação limite" em que a realidade deixa de estar presente. Há uma parte de mim que sabe perfeitamente que sou eu o alvo da humilhação, no entanto, nestes momentos terríveis é sempre requisitado outro “eu” que me convence claramente que não sou eu que estou a sofrer de uma forma tão inumana. A mente tem mecanismos próprios para combater o sofrimento. Um deles passa pela despersonalização temporária. Pensamos, não é a mim que este horror está a acontecer, eu encontro-me numa paisagem lunar à espera que a tempestade passe, distante de tudo e de todos, num lugar onde a justiça e a decência ainda imperam soberanamente. Fragmentamo-nos em milhares de estilhaços para podermos suportar o insuportável, e com isso escudamo-nos irreal mas eficazmente contra a “muita realidade” de que fala T.S.Eliot.

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