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Os primitivos e os contemporâneos

Claude Lévi-Strauss, Amazónia, 1936

Ao olhar para trás (para o passado), o homem contemporâneo tende a fazer uma leitura simultaneamente pueril e presunçosa da existência do homem "primitivo". É evidente que não se trata de uma característica exclusiva da actualidade, até porque todas as gerações possuem no seu âmago ideológico a convicção de que são superiores a todas aquelas que as precederam, no entanto, é um facto que esta desagradável jactância nunca foi tão notória como no momento actual. Como é que isto se explica? 

Existem certamente variadíssimas explicações, mas a mais importante talvez esteja relacionada com a crença que serve de base a todo o edifício ideológico da era contemporânea, nomeadamente a crença no progresso tecnológico. Cada sociedade assegura a sua coesão e estabilidade através da adopção de um conjunto de crenças, ideais e opiniões por parte do maior número possível de indivíduos. Durante muito tempo, a densa teia das mitologias assumiu uma importância fulcral no funcionamento das sociedades ditas primitivas; mais tarde, surgiram as grandes religiões monoteístas, e com elas um poderosíssimo agente aglutinador- Deus; a partir da revolução industrial, as sociedades passaram a carregar no seu código genético a fé invencível no progresso tecnológico.
  É compreensível que existam dificuldades no modo como se analisa o passado. Quando se está integrado numa existência tecnológica- como nós estamos- é natural que se tenda a analisar preconceituosamente um modo de existir no qual a tecnologia não existia. Contudo, o desfasamento ideológico entre o homem "primitivo" e o homem contemporâneo não explica tudo. Penso que é possível entender os nossos antepassados de uma forma mais respeitosa e realista.

Ao longo do século XX, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss tentou sempre demonstrar a inadequação do termo para designar os povos pré-históricos. Segundo ele, seria mais correcto apelidá-los de "povos ágrafos" (sem escrita), uma vez que este é o principal factor que nos distingue do homem "primitivo". Designações linguísticas à parte, a obra de Lévi-Strauss contribuiu decisivamente para lançar uma luz mais realista sobre a existência do homem pré-histórico, designadamente através da tentativa de eliminar alguns hábitos mentais específicos da nossa cultura. No livro "A Antropologia Face aos Problemas do Mundo Moderno", Lévi-Strauss expõe argumentos importantes para retirarmos a viseira com a qual costumamos contemplar as culturas "primitivas". Cito um pequeno excerto (edição brasileira): "Sabemos hoje que povos qualificados de primitivos, ignorando a agricultura e a criação, ou praticando somente uma agricultura rudimentar, às vezes sem conhecimento da cerâmica e da tecelagem, vivendo principalmente de caça e pesca, de colheita e apanhadura de produtos selvagens, não estão atenazados pelo temor de morrer de fome e pela angústia de não conseguir sobreviver num meio hostil. Seu pequeno efetivo demográfico, seu conhecimento prodigioso dos recursos naturais lhes permitem viver no que hesitaríamos talvez chamar de abundância. E no entanto- estudos minuciosos mostraram na Austrália, na América do Sul, na Melanésia e na África-, de duas a quatro horas de trabalho cotidiano bastam amplamente a seus membros ativos para garantir a subsistência de todas as famílias, inclusive das crianças e dos velhos que não participam ainda ou não participam mais da produção alimentícia. Que diferença com o tempo que nossos contemporâneos passam na fábrica ou no escritório! Seria, pois, falso acreditar que esses povos são escravos dos imperativos do meio. Muito ao contrário, gozam diante do meio de maior independência que os cultivadores ou os criadores. Dispõem de mais tempo livre que lhes permite atribuir um amplo espaço ao imaginário, interpor entre si e o mundo externo, como almofadas amortecedoras, crenças, devaneios, ritos, em suma, todas essas formas de atividade que chamaríamos de religiosa e artística."

Daqui não devemos inferir que o autor defende a supremacia da existência primitiva ou a superioridade do homem "primitivo", dado que as intenções de Lévi-Strauss não estão ligadas à construção de uma narrativa apologética sobre a primitividade. O bizarro desejo humano de comparar tudo- atribuindo um valor (necessariamente fictício) a todos os elementos comparados- torna-nos intelectualmente impotentes para discernirmos a realidade histórica de uma maneira sensata. Nem tudo obedece à lógica e aos ditames das avaliações valorativas. Com os estudos antropológicos de Claude Lévi-Strauss aprendemos, entre muitas outras coisas, que o homem "primitivo" não era inferior ou superior ao homem contemporâneo- era apenas diferente. Ora, é justamente essa diferença que o torna tão interessante.

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