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Metamorfose

Capa e contracapa da primeira edição da novela A Metamorfose

"Quando Gregor Samsa, certa manhã, despertou na sua cama de sonhos intranquilos, descobriu-se metamorfoseado num monstruoso insecto." Escrita entre 17 de Novembro e 7 de Dezembro de 1912, A Metamorfose é uma obra central não só no universo de Kafka como também na história da literatura, tendo inspirado uma vasta legião de escritores. Numa entrevista concedida à revista Paris Review, Gabriel García Márquez revela deste modo o impacto que a leitura desta obra teve na sua vida: "One night a friend lent me a book of short stories by Franz Kafka. I went back to the pension where I was staying and began to read The Metamorphosis. The first line almost knocked me off the bed. I was so surprised. [...] When I read the line I thought to myself that I didn't know anyone was allowed to write things like that. If I had known, I would have started writing a long time ago. So I immediately started writing short stories."

A história de Gregor Samsa é simples. Trata-se de um caixeiro-viajante pobre, não particularmente satisfeito com o seu trabalho, mas que dele não pode prescindir para conseguir pagar as dívidas dos seus pais. O quotidiano de Gregor Samsa é marcado pelo "tormento das viagens, a preocupação com as ligações dos comboios, má comida e a más horas, um contacto humano sempre ocasional, passageiro e sem afecto." É durante uma breve estada na casa dos seus pais (cerca de uma semana) que o inimaginável acontece. Gregor Samsa - criatura de carne e osso - acorda e vê-se transformado num monstruoso insecto. A partir daqui, tanto o protagonista desta narrativa como o próprio leitor são irresistivelmente arrastado para o vórtice da bizarria. Perante o sucedido, Gregor Samsa persiste durante um período considerável na negação da realidade. "E se eu continuasse a dormir mais um bocado e esquecesse todas estas tolices", pensa o desafortunado Samsa. Enquanto tudo isto acontece, Samsa tenta fazer tudo como dantes. A primeira coisa que tenta fazer é sair da cama. Quando Samsa olha para o despertador e vê que são seis e meia da manhã, fica inquieto, dado que já não é possível chegar a tempo ao trabalho. Enquanto Gregor Samsa se debate com o seu novo corpo para sair da cama, a mãe bate à porta do quarto (porta essa que está fechada à chave) e diz: "Gregor, são sete menos um quarto. Não querias apanhar o comboio?" Gregor, claro está, sussurra a custo algo de absolutamente ininteligível, o que faz com que o mistério relativo ao seu estado se vá adensando. Os pedidos para que Gregor abra a porta do quarto multiplicam-se sem cessar. A mãe, o pai e a irmã  imploram-lhe para que ele abra a porta. Sem sucesso. Nisto, o gerente da firma em que Gregor trabalha aparece em cena para obter uma explicação sobre o seu atraso. É a partir deste momento que a narrativa adquire uma atmosfera pesada, asfixiante e claustrofóbica. A viagem curtíssima mas demorada de Gregor Samsa desde a sua cama até à porta do quarto deixa-nos inquietos e incomodados, pois antecipamos claramente o horror que irá trespassar todos aqueles que esperam ansiosamente do lá de fora do quarto. Quando finalmente o monstruoso insecto roda a chave da fechadura e se mostra ao mundo, surge o pasmo, a repulsa, o medo e o terror, tudo isto em doses infinitas. Por fim, Gregor é empurrado violentamente para o interior do seu quarto e nele permanecerá quase sempre - existe apenas uma única excepção - até ao final da narrativa.

Assim que conhecemos o fim desta estranha novela, há uma pergunta que ecoa no nosso cérebro: "Como é que uma história tão obviamente impossível e irreal tem a capacidade de se apresentar à minha imaginação e sensibilidade de uma forma absolutamente verosímil?" É evidente que eu sei que nenhum ser humano é transformável num insecto, por isso pode parecer absurdo que eu me comova com uma situação que mais não é que uma invenção literária. No entanto, também é evidente que estamos perante um texto que não pode ser lido literalmente, sob pena de não compreendermos nada. Todas as obras de Kafka são profundamente alegóricas, incluindo A Metamorfose. Aliás, a razão pela qual nós aderimos tão facilmente ao desespero de Gregor Samsa prende-se com o facto de nós sabermos (ou intuirmos) que não é de uma transformação literal de um homem num insecto que Kafka quer falar, mas sim de outra coisa muito mais próxima do reino dos homens. A passagem de homem para insecto é uma metáfora que Kafka usa para explorar brilhantemente a condição humana, sendo graças a ela que se forma uma simbiose entre a narrativa e o leitor. Para o crítico americano George Steiner, pode ser lida em A Metamorfose uma espécie de profecia do Holocausto. Segundo ele, "Kafka retratou a redução do homem a um insecto atormentado. A metamorfose de Gregor Samsa, entendida por aqueles que primeiro ouviram a história como um sonho monstruoso, viria a ser o destino literal de milhões de seres humanos. A própria palavra para insectos, Ungeziefer, é um lance de trágica clarividência; foi assim que os nazis vieram a denominar as vítimas do gás."
   Na verdade, não podemos ter a certeza absoluta do significado desta obra. O universo literário de Franz Kafka encontra-se blindado à interpretação total, dada a miríade de significados de que a sua obra é feita. Contudo, podemos estar certos de uma coisa. Por mais obscuros e complexos que sejam os meios empregues pela literatura para descrever a "realidade" (para Nabokov, a palavra realidade é uma das poucas palavras que não significa nada sem aspas), é indesmentível que a literatura está sempre próxima do pulsar do mundo, da humanidade, da vida. Pelo menos, é o que sentimos ao lermos A Metamorfose.






   




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