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Poesia

Homero, 1663, Rembrandt


Em 1945, George Orwell publicou um ensaio intitulado A Poesia e o Microfone. Nesse ensaio, Orwell aborda a problemática do divórcio existente entre a poesia e o "homem comum", problema intemporal que, no entender de Orwell, talvez pudesse ser suavizado através da divulgação de obras poéticas nos meios radiofónicos. Infelizmente, sabemos hoje que as esperanças de Orwell nunca viram a luz do dia, isto é, a rádio (assim como a televisão, a internet, etc) foi incapaz de estabelecer a ponte necessária entre o cidadão comum e a poesia. A poesia é, e provavelmente será sempre, uma arte reservada a um nicho bastante diminuto. Como é que isto se explica? Dou a palavra a George Orwell: "A poesia é impopular porque está associada a ininteligibilidade, a pretensiosismo intelectual e a produto duma classe ociosa. A palavra 'poesia' suscita uma repulsa tão imediata como a palavra 'Deus' ou o colarinho sacerdotal." Ou ainda: "Não há dúvida de que na nossa civilização a poesia é de longe a mais desacreditada das artes, a única, na realidade, na qual o homem comum se recusa a ver qualquer valor." Sei perfeitamente que Orwell tem razão no que diz, isto é, o desdém e o desinteresse pela poesia são reais, mas há algo em mim que se rebela contra os preconceitos infundados de que a poesia é tantas vezes alvo. 

Tendo a acreditar que a maioria das pessoas olha para a poesia como sendo uma "coisa" sem qualquer ponto de contacto com a "vida viva" (como diria Dostoiévski), longínqua do quotidiano e enredada num novelo de palavras abstrusas que nada querem dizer, pois não possuem nada no seu interior. Para mim, esta perspectiva é totalmente falsa. Para começar, se há algo que define a poesia é o facto de ela estar firmemente comprometida (à semelhança das demais formas literárias) com a missão de investigar a existência humana. Esta investigação manifesta-se através da tentativa de fazer emergir do subterrâneo determinadas visões, sentimentos, estados de espírito e imagens que, em regra geral, não têm espaço no nosso mundo utilitário. Ainda assim, há uma parcela considerável da humanidade que não se deixa influenciar pelas regras da filosofia do utilitarismo, partilhando até algumas afinidades  com os poetas.  Falo das crianças, como é óbvio. Existe nelas a ânsia insaciável de compreender os mecanismos ocultos que regem o mundo e os outros, de construir paraísos e infernos, de se interrogarem sobre o porquê das coisas serem como são. No entanto, este gás que penetra invisivelmente e sem cessar no peito de tantas crianças, a que podemos dar o nome de "curiosidade", tende a desaparecer demasiado depressa. Aliás, muitos daqueles que nos seus anos primitivos se alimentam de curiosidade e fantasia, mais tarde tornam-se cidadãos exemplares que apregoam o senso comum e a vulgaridade nas feiras do mundo. Aqueles que resistem à vulgaridade  e ao senso comum enveredam por outros caminhos; um deles é a poesia. 

A par da alegada irrealidade da poesia, existe ainda outro elemento que irrita e afasta legiões de potenciais leitores: a obscuridade dos textos poéticos. A poesia é naturalmente intrincada e complexa, e nunca existirá poesia que não o seja. Mas porque razão é que a poesia "teima" em ser hermética? Por uma questão de eficácia, atrevo-me a sugerir. A poesia só consegue entrar nas profundezas humanas quando coloca um manto opaco sobre aquilo de que fala. Por exemplo, perante experiências substantivas como o sofrimento, a morte, o amor e a felicidade, não podemos recorrer a uma linguagem directa e transparente, sob pena de as desvirtuarmos completamente. Lembro-me sempre deste poema que Gottfried Benn dedicou à sua mãe: 
Trago-te em mim como uma ferida
que não se fecha em minha fronte.
Nem sempre dói. E não se apouca ao coração por ela a vida. 
Só fico às vezes cego de repente e sinto 
sangue na boca. 

O poder e a "verdade" desta construção poética não são comparáveis com aquele tipo de linguagem informativa e documental que usamos tantas vezes para nos referirmos ao falecimento de alguém. Frases como "sinto saudades da minha mãe" ou "o desaparecimento da minha mãe está a ser horrível", são vazias quando comparadas com o verso trago-te em mim como uma ferida que não se fecha em minha fronte. Qualquer pessoa com o mínimo de imaginação consegue intuir que este verso toca em regiões da consciência humana, da verdade e da realidade, que são impossíveis de alcançar quando recorremos a essa linguagem básica que domina o quotidiano.  É por esta razão que as palavras de Gottfried Benn - e de outros poetas - não podem ser ditas de outro modo nem podem ser substituídas por termos mais acessíveis, uma vez que isso transformaria a poesia em algo demasiado parecido  com  o jornalismo. No dia em que isso acontecesse, a poesia extinguir-se-ia. 











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