Dom Quixote, 1955, Pablo Picasso |
Imaginemos duas pessoas entregues a esse exercício labiríntico e fascinante que se chama fantasiar. Uma delas viveu no século XVIII, a outra pertence aos nossos dias. Será que faz algum sentido equiparar a natureza das experiências destes dois seres que fantasiam? Não creio. É evidente que o conteúdo das fantasias de cada um não é o mesmo, visto que existe uma distância de 300 anos a separá-los. Mas não é isto que importa evidenciar. O ponto essencial prende-se com o facto de o homem contemporâneo experienciar as suas fantasias de uma forma que nada tem que ver com a do homem setecentista. No meu entender, nada contribuiu tão decisivamente para a metamorfose do conceito de fantasia como os novos meios de comunicação e informação.
Em primeiro lugar, existe um problema sério relacionado com o excesso de informação. Quer a imaginação, quer a fantasia, são, por definição, muitíssimo sensíveis ao excesso de informação. Não é possível que uma fantasia se desenvolva quando existem muitos dados sobre o objecto fantasiado. Ao invés disso, é seguro afirmar que as fantasias apenas se mantêm vivas quando a atmosfera na qual habitam se caracteriza pela escassez e pela falta de clareza. No ensaio A Agonia de Eros, o filósofo Byung-Chul Han declara categoricamente que "os novos meios de comunicação não dão propriamente asas à fantasia. A grande densidade de informação, sobretudo de informação visual, tende antes a reprimi-la. É assim que o porno, levando de certa maneira ao máximo a informação visual, destrói a fantasia erótica." A cada dia que passa, os meios de comunicação bombardeiam-nos com avalanches sucessivas de novos objectos sobre os quais a nossa fantasia pode assentar, no entanto, esta abundância de objectos de desejo não trouxe com ela o condão de fruirmos desses mesmos objectos, dado o antagonismo genético subjacente na relação entre informação e fantasia.
Não pretendo atacar ou diminuir a importância dos meios de comunicação, mas convém não cair na ingenuidade de pensar que as conquistas tecnológicas são totalmente imaculadas e puras, como os beatos das tecnologias nos querem fazer crer. Os ventos do progresso tecnológico penetram sempre -por pouco que seja- no terreno dos valores e dos ideais humanos, provocando assim uma metamorfose irreversível no nosso modo de estar no mundo. Por exemplo, antes da massificação do automóvel privado era usual caminhar durante incontáveis quilómetros para ir ao encontro de alguém. Hoje em dia, esse tipo de sacrifício é tido como excessivo, desnecessário e absurdo. Passámos a viver segundo uma nova estrutura espácio-temporal, com vontades, oportunidades e ideias totalmente díspares daquelas que vigoravam nos séculos que nos precederam.
Por outro lado, em que situação se encontra a minha liberdade na qualidade de sujeito desejante? Ao pensar "a minha fantasia é ..." não estarei a embarcar numa ilusão, nomeadamente a ilusão de acreditar que sou o dono e inventor das minhas próprias fantasias? Na actualidade, é muito difícil alguém ter fantasias próprias, pois a cultura de massas e de consumo em que vivemos alimenta-se sobretudo da anulação da individualidade humana. Na realidade, as minhas fantasias brotaram da mente de outras pessoas, pessoas essas com destaque na indústria cultural e nos meios de informação e comunicação, sendo que a mim apenas me é dado um guião que me ensina como e o que devo desejar. Fantasio a crédito, sou permanentemente aliciado por inúmeros vendedores de desejos em segunda mão, e é assim que me sugam para um vórtice irresistível do qual ninguém sai (nem deseja sair). Enquanto isso, a fantasia vai definhando inexoravelmente.
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