"Aqui estamos mais uma vez sozinhos. Tudo isto é tão lento, tão pesado, tão triste... Dentro de pouco tempo, estarei velho. Tudo então se acabará. Tanta gente que passou por este quarto. Disseram coisas. Não me disseram grande coisa. Foram-se embora. Envelheceram, tornaram-se lentos e miseráveis, cada qual no seu recanto de terra." Assim começa Recordações da Casa Amarela, de João César Monteiro, o primeiro filme da chamada trilogia de João de Deus, personagem interpretada pelo próprio João César Monteiro, funcionando como seu alter-ego.
O filme Recordações da Casa Amarela possui inúmeros méritos e qualidades. Um dos méritos consiste em fazer-nos sentir aquele encanto particular que só emerge quando algo de original se apresenta diante de nós. No centro de Recordações da Casa Amarela está João de Deus; poeta, socialmente marginal, psicologicamente alienado e sempre "um bocado à rasca de massas", assim poderia ser escrita uma pequena súmula biográfica de João de Deus. João de Deus divide os seus dias entre a pensão esquálida onde vive (espaço esse que simboliza na perfeição quer a enfermidade física de João de Deus, quer a enfermidade social de cidades como Lisboa) e a zona pobre e ribeirinha de Lisboa. No entanto, não existe uma fronteira clara entre o universo da pensão e o universo da cidade. Para João de Deus, a pensão onde habita é um microcosmo capaz de agregar todos os elementos necessários à existência. No caso em concreto: a escuta da música de Schubert, a alegria que surge de um golo do Benfica ou o mergulho nos prazeres de um erotismo underground, com especial ênfase para este último. Ora, a Lisboa que está para lá das paredes da pensão mais não é do que um mero prolongamento deste microcosmo, não representa nenhuma ruptura com a realidade socio-afectiva ilustrada por esse espaço que é a pensão.
Dito isto, há uma importante componente cómica inerente a este filme, não fosse uma comédia lusitana o seu subtítulo. Chistes como "os ciganos não inventaram a pólvora, mas inventaram o fato de treino ao preço da uva mijona" ou inversões divertidas de lugares-comuns como "as aparências desiludem", assumem uma presença constante. A originalidade de que falei no início está também relacionada com a eficácia com que João César Monteiro consegue retratar duas culturas aparentemente antagónicas: a erudita e a popular. Referências eruditas como Schubert, Vivaldi, Mozart, Louis Ferdinand Céline, Guerra Junqueiro e Hölderlin, coexistem com Quim Barreiros e com aquela montanha de conhecimento consubstanciada na sabedoria popular. Quem viu o filme sabe que nada disto destoa, tamanha é a mestria com que João César Monteiro aborda estes dois mundos. Recordações na Casa Amarela é uma comédia dramática (ou será antes um drama cómico?) absolutamente exemplar na maneira sofisticada e singular como ilustra experiências como a pobreza, a solidão, a miséria espiritual e a mesquinhez humana. Há neste filme um ímpeto transgressor e libertário, de desafio às normas estabelecidas, algo que se verifica facilmente na abordagem perversa e corajosa feita ao erotismo. João Bénard da Costa viu na obra cinematográfica de João César Monteiro atributos suficientes para pô-la ao lado da obra dos maiores cineastas do século XX. Talvez tenha razão.
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