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Evangelhos


A Última Ceia, 1631-1632, Peter Paul Rubens

Dizem os hassídicos - um movimento setecentista surgido no interior do judaísmo - que o Talmude não tem primeira página porque todo o leitor já começou a lê-lo antes de ler as primeiras palavras. No fundo, esta ideia aplica-se a qualquer grande livro. Como os quatro Evangelhos do Novo Testamento, por exemplo. Quem nunca ouviu falar dos vendilhões do templo, da gravidez miraculosa de Maria, do trigo e do joio, da multiplicação dos pães, da fé que move uma montanha, ou de figuras como Judas, Maria Madalena e Pilatos?

E no entanto, este conhecimento que antecede até a própria leitura dos Evangelhos, não afasta o aturdimento que sentimos ao entrarmos nos textos de Mateus, Marcos, Lucas e João. O aturdimento resulta, em parte, do nevoeiro que continua a pairar sobre estes quatro documentos. Há um conjunto enorme de informação que nos continua a escapar sempre que falamos nos textos dos evangelistas. Não sabemos, por exemplo, quem foram os autores dos quatro Evangelhos. Os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, são textos anónimos, não assinados, cujas denominações resultam do facto de terem sido transmitidos e copiados desta forma ao longo dos séculos. Não existem evidências textuais que nos permitam concluir que o Evangelho Segundo Mateus tenha sido realmente escrito por um homem chamado Mateus; o mesmo acontece com todos os outros Evangelhos. No caso da data de redacção destes textos, a questão é um pouco menos intrincada, visto que as alusões presentes nos Evangelhos de Mateus e Marcos relativas à destruição da cidade de Jerusalém no ano 70 da nossa era, tornam altamente improvável a possibilidade de o primeiro Evangelho ter sido escrito antes de 70 d.C. Na mesma linha, existe também um consenso entre os estudiosos  de que o último Evangelho terá sido escrito antes do ano 98 d.C.

A grande figura dos quatro Evangelhos é, obviamente, Jesus Cristo. Existe em todos os Evangelhos um ponto em comum: a procura de transmitir ao leitor aqueles que terão sido os mais importantes acontecimentos da vida de Jesus, bem como as suas mais importantes palavras. A leitura dos quatro Evangelhos não nos dá uma visão muito exaustiva da vida concreta de Jesus. Mateus e Lucas informam-nos que Jesus nasceu em Belém (Marcos e João são omissos quanto ao nascimento de Jesus); todos os evangelistas descrevem milagres que Jesus terá levado a cabo; e todos eles relatam o julgamento injusto de que Jesus foi alvo, julgamento esse que culminou na crucificação do filho de Deus. Na verdade, as ocorrências da vida de Jesus nada são quando comparadas com os seus memoráveis discursos. Discursos feitos por um homem tremendamente carismático, com  um enorme poder de persuasão junto das massas, e que através do uso de palavras simples consegue fazer passar uma mensagem bela como poucas, mas exigentíssima. Como explica o professor Frederico Lourenço, um dos aspectos mais singulares destes quatro textos assenta nos temas abordados por Jesus. Ao contrário da literatura do mundo greco-romano, "nestes quatro textos não se falava das façanhas heróicas de reis e de guerreiros, nem se reportavam as conversas de aristocratas atenienses com o lazer e o dinheiro para se dedicarem à filosofia. Aqui falava-se de pescadores e de leprosos; falava-se de pessoas desprezadas pela sua baixa condição na sociedade, pelas suas deficiências físicas, pelos seus problemas de saúde mental; falava-se de figuras femininas que não eram as rainhas e princesas da epopeia e da tragédia gregas, mas sim mulheres normais da vida real (a queixarem-se da lida da casa ou a exercerem, talvez, a mais antiga profissão do mundo)."  

São sobejamente conhecidas as opiniões de Jesus Cristo em determinadas matérias: relativamente aos ricos, o Messias afirma que "é mais fácil um camelo passar através do buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus." Quando Pedro, seu discípulo, lhe pergunta: "Senhor, quantas vezes errará contra mim o meu irmão e o perdoarei? Até sete vezes?" Jesus responde-lhe: "Não te digo para perdoares até sete vezes, mas até setenta vezes sete." No Evangelho de Lucas, o imperativo ético não julgarás fica bem patente: "Porque miras o cisco no olho do teu irmão e não te dás conta da trave que está no teu próprio [...] Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho e então verás melhor para tirares o cisco do olho do teu irmão." Porém, seria um erro apresentar Jesus como uma figura exclusivamente caridosa, bondosa, humilde e compreensiva, que foi o que a Igreja fez ao longo dos séculos (por razões óbvias). Existem, aliás, ideias no pensamento de Jesus que são, atrevo-me a dizer, quase chocantes à luz da moral contemporânea. A mescla de indiferença e de desprezo com que Jesus trata a sua própria família é um óptimo exemplo do que acabo de dizer. Senão, leiamos este pequeno excerto de Marcos: "E chega a sua mãe e seus irmãos que, ficando do lado de fora, o mandam chamar. A multidão estava sentada em volta dele; e dizem-lhe: «Eis a tua mãe e os teus irmãos que lá fora te procuram.» E ele, respondendo, diz-lhes: «Quem é a minha mãe e os meus irmãos?» E percorrendo com o olhar os que estavam sentados em volta, diz: «Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe.»" Outro exemplo do seu radicalismo ideológico, este proveniente de Mateus: "Não penseis que vim para lançar paz sobre a terra. Não vim para lançar paz, mas sim uma espada. Vim para separar uma pessoa do seu pai e uma filha da sua mãe e uma nora da sua sogra, e inimigos de cada um são os que vivem em sua casa. Aquele que ama pai ou mãe mais do que a mim não é digno de mim. E quem ama filho ou filha acima de mim não é digno de mim." Enfim, Jesus Cristo foi tudo menos uma figura unidimensional, ao contrário do que foi e continua a ser apregoado por tantas e tantas pessoas. 


Numa era crescentemente pós-teológica (como é a nossa), para quê ler os quatro Evangelhos do Novo Testamento? Não será uma espécie de anacronismo estéril, perguntarão alguns? Cabe a cada pessoa dar a resposta a esta interrogação no final da leitura dos quatro Evangelhos. Numa crónica intitulada O alfabeto do mundo, Claudio Magris -o grande romancista, ensaísta e professor- afirma o seguinte: "A Bíblia -Antigo Testamento e Novo Testamento- e a tragédia e o mito grego continuam, de facto, a fornecer as chaves e as imagens para compreender quem e o que somos, a culpa e a salvação, o exílio e o retorno." Não é coisa pouca.  











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