Na recta final da sua vida, Aquilino Ribeiro publicou, em 1958, aquele que é, provavelmente, o seu romance mais conhecido: Quando os Lobos Uivam. Dono de uma personalidade e de uma escrita naturalmente insurrectas, Aquilino Ribeiro conheceu intimamente os agravos impostos por um regime do qual foi sempre opositor: o Estado Novo. Como é evidente, a liberdade que exala das páginas deste livro não passou despercebida ao crivo da censura, uma vez que - e agora cito o censor- "o autor intitula este livro de romance, mas com mais propriedade deveria chamar-lhe de romance panfletário, porque todo ele foi arquitectado para fazer um odioso ataque à actual situação política." Quando os Lobos Uivam é uma obra que, no meu entender, sumariza como poucas as características essenciais do século XX português. Nele encontramos a denúncia feita ao Estado enquanto instituição opressiva e repressiva, incapaz de facultar aos cidadãos que tutela os direitos, liberdades e garantias próprios de um Estado democrático; na linha da corrente neo-realista, Aquilino refere incansavelmente as misérias materiais, intelectuais e espirituais presentes nas comunidades rurais; a eterna condição de "potencial emigrante" do povo português, algo particularmente evidente ao longo da ditadura de Salazar; a eterna oposição entre o mundo urbano e o mundo rural.
Apesar do evidente enfoque na situação socio-política do Portugal de então, seria redutor reduzir este livro a um "mero documento" de combate político. Está muito para lá da questão política. No meu entender, o centro narrativo deste romance é desenvolvido tendo sempre como suporte a ideia de que o mundo rural, pelo menos tal como Aquilino o conhecera, caminhava inexoravelmente para uma desintegração impiedosa. Aquilino sabia perfeitamente que o mundo rural se encontrava num impasse existencial insolúvel, dadas as pressões provenientes de uma economia crescentemente globalizada, eficiente e sofisticada e do "irresistível" pulsar de vida dos centros urbanos.
O enredo de Quando os Lobos Uivam é tecido em torno desta ideia de fim do mundo rural, nomeadamente através da representação de uma disputa aguerrida entre o povo beirão e a ditadura do Estado Novo durante a década de 40, conflito esse que surge devido a um projecto de arborização (plantação de um pinhal) de terrenos baldios na Serra dos Milhafres - local através do qual os beirões retiravam o seu sustento. À medida que a narrativa vai ganhando forma, constatamos que o ocaso do mundo rural é abordado pelo autor de um modo bastante ambivalente. Se por um lado nos é dito que a vida na serra enreda o aldeão numa existência agreste, desesperada e infinitamente miserável, por outro lado não é menos verdade que a relação simbiótica entre o homem e a sua serra é tão profunda que seria absurdo ignorar o apego que este nutre pela paisagens que povoam quotidianamente o seu olhar. Segundo Aquilino, existe aqui uma vertente que transpõe qualquer análise de carácter objectivo ou racional. Não podemos compreender as razões que motivam alguém a amar a fonte da sua miséria, pois não estamos num terreno propício ao florescimento da razão e da objectividade. A relação filial que os habitantes de uma comunidade rural estabelecem com as suas terras, diz-nos Aquilino Ribeiro, é responsável por uma das maiores dádivas que lhes podem ser dadas: uma identidade. Sem a serra, isto é, alterando a geomorfologia da serra, o serrano fica exposto aos quatro ventos, completamente desnudado, incapaz de saber quem é. Numa passagem assaz significativa para a compreensão deste romance (bem como do pensamento de Aquilino), lemos o seguinte: "Os senhores propõem-se cobrir os penhascos de arvoredo, remover o cascalho dos oiteiros, atulhar as ravinas e os barrancos. Vão destruir o retrato da família. Aquilo é o retrato da família serrana. A sua fisionomia vem-lhe dali. E que mal? - estou a ouvir dizer ali ao senhor Streit. - O mal é que o serrano nunca mais sabe quem é. Fica desgarrado. Passa a andar a monte. A ser alma penada. Os penhascos são a âncora do seu próprio sentimento. Querem-no esvaziar, querem-lhe lavar o cérebro, como agora se diz, pois tirem-lhe a serra e onde só havia rocha, espanto, miragem plantem o arvoredo, e terão feito outro homem. Evidentemente que pior. Ouço dizer que a máquina humana tem milhares de anos. Terá. Pois desmontá-la, convertê-la noutra, é tarefa perigosa."
Houve um tempo em que Aquilino Ribeiro era considerado um dos grandes nomes da literatura portuguesa. Hoje em dia, está um pouco esquecido (tal como o Portugal retratado por ele). A linguagem utilizada por Aquilino é, utilizando o título de um livro de Eugénio de Andrade, rente ao dizer (ou seja, a proximidade da fala do povo da Beira e da linguagem de Aquilino é muito grande), estando recheada de arcaísmos e de regionalismos, o que contribui seguramente para que muitos leitores se afastem. Entrar no mundo de Aquilino não é fácil, dizem alguns. Mas qual é o escritor, cuja obra valha a pena ser lida, que é fácil?
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