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Servidões

Retrato de Herberto Helder, Frederico Penteado

Li recentemente uma entrevista feita ao escritor e professor Nuno Bragança, em que, a certa altura, ele dizia isto: o século XX português é o grande século da poesia europeia. É verosímil que esta observação esteja correcta. Basta referir apenas alguns nomes: Camilo Pessanha, Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Teixeira de Pascoaes, Eugénio de Andrade, Ruy Belo, Sophia de Mello Breyner, Mário Cesariny e, claro, Herberto Helder.  
   Ao longo de mais de meio século, Herberto Helder foi tecendo a sua obra poética, singularíssima no panorama das letras portuguesas. Numa era em que até os mais pequenos se põem em bicos de pés para alcançar a fama - e as vantagens dela provenientes - Herberto Helder recusou sempre a cedência ao estatuto de figura pública. Não dava entrevistas, não aceitava  ser fotografado e recusou os vários prémios que lhe foram concedidos (incluindo o prémio Pessoa). Como acontece tantas vezes nestes casos, a recusa radical de Herberto Helder em fazer parte da "civilização do espectáculo" teve uma consequência paradoxal: o seu comportamento associal, aliado à sua grandeza poética, lançou-o para as luzes da ribalta.

Pouco menos de dois anos antes de morrer, em 2013 (a morte veio em 2015), a poesia de Herberto Helder já se encontrava devidamente amadurecida e mitificada. Foi nesse ano que saiu o livro Servidões, o antepenúltimo livro de poemas do grande mago das palavras, unanimemente aclamado pela crítica literária. Logo no início de Servidões, Herberto Helder decreta que o prestígio da poesia assenta no facto de ser "um início perene, nunca uma chegada seja ao que for", frase essa que serve de conselho para uma leitura proveitosa de Servidões. Também neste livro não existe uma meta discernível, pois a cada poema que lemos sentimos estar sempre a começar de novo, no sentido em que o modo como Herberto Helder descreve a "realidade das coisas" se caracteriza pela contínua metamorfose, o que explica  a impossibilidade de "uma chegada seja ao que for."

O universo de Servidões é constituído por uma profundíssima atenção aos aspectos orgânicos da existência. Todos os fenómenos são abordados pelo autor através de um uso singularmente físico da linguagem. Basta citar um pequeno excerto para se compreender o que quero dizer: "À noite tive febre. Havia qualquer coisa pérfida e perversa neste mundo das frutas muito fortes, dos animais esquartejados, dos cheiros, este mundo espesso e quente, um mundo de imagens orgânicas." Cada poema de Servidões é um ramo inserido num tronco comum, e esse tronco comum é a fisicalidade de todas as coisas.
   Na minha opinião, existe neste livro dois grandes temas sobrepostos a todos os outros: o erotismo e a morte. Em vésperas de despedir-se da vida, Herberto Helder, com mais de 80 anos, crava as unhas no erótico, tentando escapar à lei da morte. No breve poema "l'amour la mort" (o próprio título é denotativo), o poeta diz:
petite pute deitada toda nua sobre a cama à espera, 
e inexplicavelmente eu entro nela de corpo inteiro
e idade inteira

O erotismo sôfrego presente neste poema é um retrato pungente da consciência da proximidade da morte. A sofreguidão é sempre pungente, pois o medo do desaparecimento do objecto amado está permanentemente no horizonte, e no fim da vida essa pungência atinge o paroxismo. Também é significativo que Herberto Helder diga que entrou na "petite pute" de idade inteira. Poucas páginas mais à frente, noutro poema, o poeta serve-se de um haiku para descrever sucintamente a natureza do erotismo:
fôsses tu um grande espaço e eu tacteasse
com todo o meu corpo sôfrego e cego

Por outras palavras, o que o poeta nos diz é que nada é mais absolutista do que a paixão erótica. O corpo da amada não é suficientemente amplo para acolher a luxúria daquele que ama, por isso ele deseja a sua expansão infinita, pois só assim é levada por diante a desrazão e a obsessão inscritas no cerne de qualquer desejo erótico. A aparente crueza com que Herberto Helder escreve sobre o erotismo não oblitera aquilo que é um traço fundamental da sua obra - a importância e seriedade subjacentes à mais pequena manifestação erótica. Roubando as palavras de Paul Valéry (outro grande poeta), podemos afirmar que o erotismo "herbertiano" não se reduz a uma mera "troca de fluidos corporais", visto que almeja algo que está para além disso e que todos nós intuímos o que é, ainda que não saibamos exprimi-lo com exactidão.

Por outro lado, Servidões é um livro brilhante no modo como nos mostra um homem encostado às cordas da vida. Confrontado com o olhar abrasador da morte, Herberto Helder faz a pergunta que precede todas as outras perguntas: estou aqui para quê porquê e como? 
   Apesar de Herberto dizer que foi "obrigado a viver dobrados os oitenta", a morte não é encarada como sendo uma libertação, uma vez que a morte não liberta quem quer que seja. O seu grande desígnio é aprisionar cada indivíduo na grande teia do medo. E medo é precisamente o que o poeta sente:
os capítulos maiores da minha vida, suas músicas e palavras, 
esqueci-os todos:
octagenário apenas, e a morte só de pensá-la calo, 
é claro que a olhei de frente no capítulo vigésimo,
mas não nunca nem jamais agora:
agora sou olhado, e estremeço
do incrível natural de ser olhado assim por ela 

Um tipo de oitentas está fodido, confessa-nos Herberto Helder, idade terrível em que todos os caminhos vão dar à morte. Isto leva-o a imaginar a sua própria morte de um modo especialmente macabro:
já não tenho tempo para ganhar o amor, a glória ou a 
Abissínia,
talvez me reste um tiro na cabeça,
[...]
bom seria entrar no sono como num saco maior que
o meu tamanho,
e que uns dedos inexplicáveis lhe dessem um nó rude, 
e eu de dentro o não pudesse desfazer:
um saco sem qualquer explicação, 
que ficasse para ali num sítio ele mesmo sítio bem
amarrado
[...]
esquecido de mim mesmo num saco atado cegamente, 
num recanto pela idade fora,
e lá dentro os dias eram à noite bem no fundo, 
um saco sem qualquer salvação nos armazéns obscuros

Mas nem só de erotismo e de morte está composto Servidões. Referências à figura matriarcal, às paisagens mitológicas, ao absurdo e à magia da existência, ao milagre da criação poética e à beleza, assumem um papel de destaque ao longo deste livro. Por tudo isto e por tudo aquilo que eu fui incapaz de transmitir, Herberto Helder merece continuar a ser lido. Acredito que essa continua a ser a melhor maneira de homenagearmos um escritor.






                                     


   

   


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