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Vista de Delft

 Vista de Delft, Johannes Vermeer, 1660-1661


Para o escritor francês Marcel Proust, Vista de Delft era o mais belo quadro do mundo. Não podemos determinar exactamente se Proust tem ou não razão, dada a natureza profundamente subjectiva de qualquer avaliação estética, no entanto, é muito fácil sermos arrastados para uma conclusão idêntica assim que pousamos o olhar em Vista de Delft.
     Consigo, sem grande esforço, demorar-me neste magnífico quadro durante imenso tempo. Quando tal acontece, ou seja, quando consigo olhar para algo durante muito tempo, isso significa que estou a olhar para o belo em estado puro. Como Simone Weil explicou, "o belo é qualquer coisa a que podemos dar atenção." Nesses momentos, o meu olhar vagueia pela totalidade da tela, percorrendo o seus espaços nos sentidos horizontal e vertical, em busca de algo que eu tenho dificuldade em discernir o que possa ser. É a velha história contada por Blaise Pascal: "o coração tem razões que a própria razão desconhece." Também eu desconheço o porquê de me sentir encantado por este quadro, assim como desconheço o que está por dentro do prazer que eu sinto perante determinadas ruas, paisagens, pessoas, entre muitas outras coisas. 

Vista de Delft, de Johannes Vermeer, é uma pintura representativa de um mundo que já não existe. Não me refiro à inevitável transformação do lugar retratado por Vermeer (fotografias actuais mostram-nos que existem elementos que se mantêm tal como Vermeer os pintou). Aquilo que separa este quadro dos nossos dias é a atmosfera de tranquilidade que dele se desprende. A esplêndida lisura da água e os reflexos da cidade que adornam as águas do rio Schie, os barcos que esperam pacientemente no cais e as insondáveis conversas de pessoas que talvez aguardem por alguém, retratam primorosamente essa variante da felicidade a que normalmente damos o nome de tranquilidade. Nesta pintura, tal como noutras do artista, nota-se claramente a afeição de Vermeer pela serenidade, pois é através dela que é garantido o acesso às experiências humanas mais significativas. Na sua visão de mundo, a serenidade possui um valor que transcende o plano meramente individual. Cada indivíduo está inserido numa comunidade, cada comunidade assegura a sua existência através da adopção de princípios como a ordem, a harmonia, a justiça e o bem-estar, portanto, é de presumir que a serenidade seja um estado mental indispensável para que todos estes princípios e valores sejam postos em prática.

Um rio, uma cidade e um céu, constituem as três grandes camadas visuais presentes em Vista de Delft. E é na estrutura da cidade que encontramos outro traço que separa este quadro setecentista dos dias de hoje. Falo, claro, da relevância dos edifícios religiosos na paisagem citadina de Delft. Em pleno século XVII, a Igreja conservava ainda grande parte do seu vigor e da sua influência nos meandros da política e da sociedade. Se olharmos com atenção este quadro, iremos verificar que as igrejas predominam sobre o resto da malha urbana, o que se explica pelo facto de serem os edifícios mais altos de Delft. Desde muito cedo que a Igreja entendeu a relação entre a altura e o poder, relação essa que cumpre uma dupla função: por um lado, a Igreja constrói edifícios altos para demonstrar ao mundo o poder de que dispõe enquanto instituição "terrena"; por outro lado, as várias torres pontiagudas que se erguem em direcção ao céu simbolizam a proximidade entre a instituição eclesiástica e a dimensão divina da existência. Os centros de poder eclesiásticos - as igrejas - funcionam como uma espécie de mediador entre a ordem terrena e a ordem divina, sendo nelas, nas igrejas, que tem lugar o contacto entre ambas as ordens.

Vista de Delft parece pertencer àquele grupo de obras de arte destinadas à perenidade. O mundo de Vermeer já não é o nosso, a pintura contemporânea também já não se assemelha a quadros como Vista de Delft, no entanto, continuamos a ser arrebatados por ele com a mesma intensidade com que os nossos antepassados setecentistas terão contemplado este quadro pela primeira vez.  
   
     
    
 

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