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Filantropia

São Tomás de Vilanova dando esmola aos pobres, Bartolomé Esteban Murillo

989 personagens: é este o número de personagens criadas pelo romancista Charles Dickens ao longo da sua prolífica carreira literária. Perante este número gigantesco, é razoável afirmar que a obra de Dickens é uma das possíveis estradas que podemos percorrer se quisermos conhecer a fundo os inúmeros caracteres que constituem a espécie humana. Estão lá todos. Cada ser humano é um mundo, e a totalidade desse mundo encontra-se comprimida no interior das milhares de páginas escritas por Dickens, arrisco-me a dizer. 
     No quarto capítulo do romance Casa Sombria, Dickens - no meio de um emaranhado infernal de personagens - leva o leitor pela mão e apresenta-lhe a senhora Jellyby. Quem é a senhora Jellyby? Ninguém melhor que o seu criador para descrever a insigne senhora: "A senhora Jellyby é uma pessoa extraordinariamente enérgica, por completo consagrada ao bem público. Em várias épocas da sua vida, dedicou-se a uma grande variedade de assuntos públicos e actualmente, e enquanto a não seduza outro tema, dedica-se a problemas de África, com vista ao desenvolvimento geral da cultura do café... e à dos indígenas... pensando em que o nosso excedente de população se estabeleça nas margens dos grandes rios africanos." A importância da senhora Jellyby na narrativa da Casa Sombria é irrisória, no entanto, a sua presença serve um propósito tipicamente dickensiano: pôr a nu os vícios, os valores (ou a falta deles) e os modelos comportamentais da sociedade, não poupando ninguém, independentemente do estrato social em causa. Os holofotes são postos sobre a senhora Jellyby para que entendamos a natureza ambivalente da filantropia, ambivalência essa que se manifesta no modo como esta vive o seu "instinto filantropo". Enquanto dita e escreve cartas intermináveis para o continente africano, a senhora Jellyby ignora totalmente o que se vai passando à sua volta. O marido, os filhos e a casa, estão a poucos metros de distância da caridosa Jellyby, contudo, são eles os verdadeiros fantasmas da sua vida. Jellyby vive enfiada numa campânula, da qual não se vê nem o imobilismo lúgubre do marido, nem a irrequietude desesperançada dos filhos, nem a decrepitude física e "atmosférica" da casa onde vive. Apesar da distância (ou talvez por isso mesmo), África assume uma importância total na vida da senhora Jellyby, não havendo nela espaço para mais nada.  

Esta pequena personagem do mundo de Charles Dickens pode ser facilmente transposta para os nossos dias, juntamente com os dilemas éticos que ela encerra. O tema da filantropia está necessariamente imbricado no plano da ética, proporcionando inesgotáveis discussões desde o surgimento da filosofia. Nesta matéria, existem visões marcadamente antagónicas na maneira como é entendido o fenómeno da filantropia. Segundo a filosofia consequencialista, uma acção boa é sempre boa, ainda que as motivações que guiam o sujeito que a pratica não sejam as mais benévolas. Quando o resultado dos meus actos é positivo, isso significa que agi de acordo com o bem. Se, pelo contrário, algo de negativo resultar dos meus actos, os consequencialistas são peremptórios em afirmar que procedi erradamente. 
     Como é óbvio, este pragmatismo não é comungado por inúmeras doutrinas morais, tais como a doutrina cristã, por exemplo. Pecamos por "pensamentos, palavras, actos e omissões." Quem nunca ouviu esta impiedosa sentença apregoada durante séculos e séculos pela moral cristã? Este entendimento sobre o bem e o mal está nos antípodas da moral consequencialista. No cristianismo, todos os comportamentos humanos são analisados à luz daquilo que a pessoa pensa, diz, sente e faz - a questão do bem e do mal nunca se esgota nas consequências das acções desenvolvidas. 

Pessoalmente, tenho as maiores reticências em aceitar o estatuto de pureza moral que é tantas vezes outorgado aos filantropos e à filantropia. De vez em quando, chegam-nos notícias de que determinado milionário ofereceu quantias exorbitantes de dinheiro em prol de uma comunidade, instituição, pessoa ou causa. Nesses momentos, a reacção popular é a do costume: louva-se  a "humanidade" de Bill Gates; enfatiza-se o "altruísmo" de Warren Buffett; tecem-se elogios rasgados à "generosidade" de Mark Zuckerberg. Em certo sentido, eu entendo o unanimismo gerado por uma doação milionária. Eu também concordo que é preferível que Bill Gates use a sua fortuna a ajudar os mais desfavorecidos do que na mera satisfação dos seus interesses pessoais. Contudo, o jornal que me transmite a notícia dos seus feitos filantrópicos também me diz que "em 2018, os 26 mais ricos do mundo tinham em seu poder tantos recursos como os 3,8 mil milhões de pessoas que fazem parte da metade mais pobre da população mundial." E é aqui que a distinção entre o essencial e o acessório me parece especialmente importante. O importante não é sentirmos regozijo perante a magnanimidade do milionário X ou Y, nem engalaná-lo com os adjectivos mais adoráveis. O importante é entendermos aquilo que está a montante das doações milionárias, ou seja, aquilo que faz com que elas existam. O facto de alguém ter capacidade financeira para entregar milhões de euros para fins caritativos talvez não nos diga nada sobre o carácter dessa pessoa, mas exemplifica na perfeição a natureza aberrante do sistema económico vigente. Num mundo justo, equilibrado e não-lunático (peço ao leitor que faça um exercício de imaginação), seria impossível conceber uma estrutura socio-económica na qual 26 pessoas tivessem os mesmos recursos financeiros que 3,8 mil milhões de pessoas (nunca é demais repetir tal barbaridade). 
Na verdade, os filantropos - principalmente os filantropos milionários - são os principais responsáveis pelas desigualdades e problemas que eles próprios tentam combater "tão generosamente". Isto faz-me pensar na mítica figura do bombeiro que apaga com afinco o incêndio que ele próprio ateou. Por que razão havemos de elogiá-lo, se foi ele o responsável pelo deflagrar das chamas? É nisto que consiste a perversidade da filantropia. 


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