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O Processo

Franz Kafka

Houve gestos-chave que marcaram o século XX. Por todos os pontos do globo, milhões de cidadãos anónimos foram intimados, através de uma banal mas terrível batida numa simples porta, a receberem os arautos do totalitarismo nas suas próprias casas. Ser acordado a meio da noite, ou de manhã, pelo som que acompanha o acto de bater subitamente numa porta é, provavelmente, um dos gestos que melhor definem não só o modus operandi dos regimes ditatoriais do século passado, mas também a essência do próprio século. E poucos terão captado a essência do século passado como Franz Kafka.  
     A página inaugural do romance O Processo - escrito entre 1914 e 1915 por Franz Kafka - pode ser entendida como um testemunho profético daquilo que, na opinião de Kafka, estava para eclodir no seio da civilização ocidental. "Alguém devia ter difamado Josef K., pois, certa manhã, sem que tivesse feito qualquer mal, foi preso. [...] Imediatamente se ouviu alguém bater à porta, e logo de seguida, entrou um homem que ele nunca vira nesta casa." São impressionantes as ressonâncias históricas que sentimos ao lermos este pequeno excerto. De facto, e como já foi apontado por alguns estudiosos de Kafka, podemos ler O Processo - assim como outros textos do autor -  como uma espécie de reportagem sobre o estado das coisas no início do século XX, particularmente na Europa Central. Contudo, as "reportagens" de Kafka não são reportagens no sentido jornalístico do termo; pelo contrário, temos de ser capazes de imaginar alguém suficientemente arguto a ponto de reportar factos antes de eles terem realmente acontecido. Foi este o dom de Kafka.

Não é difícil sintetizar a narrativa urdida em torno do romance O Processo. Num certo dia, um diligentíssimo gerente bancário chamado Josef K., é preso sem que exista qualquer razão para tal. É-lhe somente comunicado que lhe foi instaurado um processo, nada mais que isto. Josef K. desconhece a causa da acusação, assim como os responsáveis pelo mover de tão inusitado processo. Cedo se descobre que o processo em causa é pouco consentâneo com as práticas legais subjacentes a qualquer ordem jurídica. Na parte final do primeiro interrogatório a que Josef K. é submetido, o inspector pergunta-lhe: "Certamente  que quer ir ao banco?" Perante esta pergunta, o preso e acusado Josef K. interpela o seu interlocutor, dizendo: "Como posso ir ao banco se estou preso?" Como é costume acontecer, os inspectores têm sempre resposta para tudo, e o inspector que interroga Josef K. não foge à regra: "Bem, [...] o senhor entendeu-me mal, o senhor está preso, é certo, mas isso não o deve impedir de trabalhar. Não deve também ser impedido de levar a sua vida normal." Com humor, Josef K. replica-lhe: "Então não é muito mau estar-se preso." Chegados a este ponto da narrativa, o pesadelo kafkiano começa definitivamente a formar-se. A pouco e pouco, as exigências rocambolescas do processo vão-se colando à existência de Josef K.; uma existência precária gasta em diligências que lhe permitam comprovar a sua inocência, pondo em evidência a absurdez do processo judicial. Josef K. trava conhecimento com advogados, oficiais de justiça ou meros concidadãos em situação análoga à sua: todos eles lhe dão a entender que o processo que paira sobre si é particularmente grave, complexo e, acima de tudo, inescapável. O processo é um monstro informe que tudo destrói, incluindo as próprias certezas do acusado relacionadas com a sua inocência. É este o instante no qual é decretada a ruína de Josef K..

O Processo pode ser interpretado de mil e uma maneiras. Segundo a interpretação clássica, O Processo é uma alegoria sobre a crescente burocratização dos Estados modernos, nomeadamente no que esta tem de mais arbitrário, violento e irracional. Tudo isto são factos. No entanto, a omnipotência da burocracia é uma ideia apenas aplicável às instituições burocráticas em si mesmas, mas nunca àqueles que as servem. Em O Processo, os servidores da burocracia - desde os guardas até aos juízes - são vistos como meros "peões" de um tabuleiro que os transcende e do qual eles nada sabem. No mundo de Kafka, os burocratas não são exactamente burocratas: são, como diria Herberto Helder, burrocratas.

O filósofo e ensaísta alemão Walter Benjamin escreveu que "o mundo das chancelarias, das repartições, dos quartos escuros, gastos e húmidos é o mundo de Kafka." A juntar a isto, eu acrescentaria somente o sentido de humor que permeia a obra de Kafka. É claro que o humor presente no livro O Processo não se insere em nenhuma categoria humorística típica, isto é, não é alimentado por punchlines; alimenta-se, sim, de um trem de situações paranóicas, irreais, absurdas e sem sentido. A atracção pelo lado ilógico e absurdo do mundo - que, aliás, habita em todos nós, e a que não costumamos dar guarida, dadas as exigências da vida prática - representa uma importante força motriz na comicidade kafkiana. Não era por acaso que Kafka ria descontroladamente quando lia em voz alta alguns dos seus textos diante dos seus amigos.

A par de Thomas Mann, Marcel Proust, James Joyce e Jorge Luis Borges, o checo Franz Kafka é um dos gigantes literários do século XX, cujo magnetismo ainda se faz sentir nos dias de hoje. Em todos os cantos do mundo existem graffitis representando o Gregor Samsa da novela A metamorfose ; o termo "kafkiano" foi elevado ao estatuto de adjectivo em todos os idiomas. Como afirmou George Steiner num dos seus ensaios, Kafka é titular de uma letra do alfabeto - a letra K. A letra "S" não é de Shakespeare, a letra "D" não é de Dante, assim como a letra "T" não é de Tolstói. Porém, a letra "K" é de Kafka. Nenhum outro escritor alcançou tal proeza.



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