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Meridiano de Sangue


Em Meridiano de Sangue, Cormac McCarthy recorre a uma série de acontecimentos historicamente factuais para estruturar o enredo do romance que é, na opinião de Harold Bloom, "o maior feito estético da literatura americana contemporânea." No rescaldo da guerra travada entre os Estados Unidos da América e o México, durante os anos de 1846 a 1848, na qual os mexicanos cederam mais de um milhão de metros quadrados de territórios aos seus vizinhos omnívoros do norte, o ímpeto expansionista e aculturador americano adquiriu um vigor acrescido. Em termos concretos, esse vigor traduziu-se - como seria expectável - na perseguição e aniquilação dos povos indígenas e mexicanos.

Logo na primeira página, Cormac McCarthy instala-nos desconfortavelmente no aposento das trevas: "Vede o menino. É pálido e magro, traz no corpo uma camisa andrajosa de fino linho. [...] A mãe, morta nesse dia, há catorze anos, incubou no próprio seio a criatura que havia de lhe pôr fim à vida. O pai nunca pronuncia o nome dela, o filho não o sabe. Tem uma irmã neste mundo que não mais tornará a ver. Observa, pálido e encardido. Não sabe ler nem escrever e nele medra já o gosto pela violência tresloucada. [...] Aos catorze anos, foge de casa. Não tornará a ver a cozinha gélida nas trevas antes da alvorada." Montado numa mula, sozinho, o rapaz (será sempre nomeado desta forma ao longo do romance) dirige-se lenta mas obstinadamente para as regiões do Oeste americano - o mítico Oeste. Durante mais de um ano, envolve-se em rixas, é ferido a tiro, percorre as tabernas mais esconsas, rouba e trabalha nos lavores mais diversos. Os dias do rapaz sucedem-se uns aos outros, sempre de olhos fitos no Oeste, sem que entendamos as motivações e as finalidades inscritas na  sua cabeça. Num episódio passado junto a um rio, o narrador descreve o rapaz como alguém que caminha "pela água como um candidato ao baptismo sem eira nem beira, desgraçado como ninguém."
     Porém, a narrativa assume outra feição no momento em que o rapaz é instado a alistar-se num exército, exército esse que não é exactamente um exército oficial, mas sim um grupo paramilitar a que a história deu o nome de "Gang Glanton". Em certa medida, a história deste romance está intimamente relacionada com a história do "Gang Glanton", sendo uma reconstituição ficcional de algo que contêm um fundo verídico.

A ingressão do rapaz nas fileiras deste grupo criminoso - chefiado por Glanton - assinala o início daquilo a que podemos chamar o "primado da violência". Violência exercida sobre quem quer que se atravessasse no caminho, mas mais concretamente sobre os índios que habitavam em pequenos fragmentos do sudoeste americano. Poucos livros terão alcançado os píncaros de selvajaria a que Cormac McCarthy nos conduz em Meridiano de Sangue: crianças atiradas do alto de muralhas, crucificações, enforcamentos, ossadas animais e humanas espalhadas por planícies e montanhas, crânios esborrachados, orgãos genitais amputados, cães e os seus donos lançados às fogueiras mais vivas, em suma, um verdadeiro mostruário dos horrores humanos. Homo homini lupus, isto é, o homem é um lobo para o homem, como afirmou o romano Plauto.
     A violência é, indiscutivelmente, o tema principal de Meridiano de Sangue. O juiz Holden - a personagem mais sinistra do romance - não deixas dúvidas quanto à inevitabilidade da guerra: "Pouco importa o que os homens pensam da guerra, disse o juiz. A guerra perdura. Vale tanto como perguntar aos homens o que pensam da pedra. A guerra sempre existiu. Antes de o homem surgir, a guerra já estava à espera dele. O ofício supremo à espera do supremo artífice. Assim foi, e assim será sempre. Assim e não de outro modo qualquer." Quando perguntam ao juiz o porquê da perenidade das guerras, ele responde: "A guerra perdura porque os jovens a adoram e os velhos adoram senti-la dentro de si. Tanto os que combateram como os que não." Como todos os seres dados à violência, os facínoras que cavalgam e caminham no vasto sudoeste americano são incapazes de ver aquilo que está para lá dos próprios olhos; os olhos deles estão voltados para dentro, para o labirinto em que só existe o eu:"tanto a terra em si como todos os seres que ali tinham a sua morada eram para ele remotos e de existência questionável."

No interior da alucinação sangrenta de Meridiano de Sangue, existem magníficas clareiras nas quais a violência sai de cena para dar lugar à natureza. Cormac McCarthy é exímio na forma como molda os elementos do mundo natural e os transforma em palavras, como se de um processo químico se tratasse. Se um dos desígnios da ficção é ensinar o leitor a ver, como defendeu Joseph Conrad, Cormac McCarthy domina-o como poucos. Não é nada fácil escrever sobre a paisagem ou sobre os fenómenos que ocorrem no seio da natureza sem cair na adjectivação banal ou no uso de metáforas caducas e de frases feitas. O "nosso" desconhecimento da natureza faz com que tenhamos de recorrer a fórmulas previamente testadas para não cairmos no silêncio. As diversas descrições da paisagem do sudoeste americano - das montanhas do Colorado aos infindáveis desertos do Texas - são das mais conseguidas de Meridiano de Sangue. Existe em todas as coisas visíveis (na natureza) um prenúncio de iminente apocalipse e esse apocalipse é obra do homem, parece dizer-nos o narrador deste livro. A desgraça humana contamina a própria morfologia do mundo natural, como se adivinha nesta excelente descrição de uma tempestade: "Durante toda a noite, relâmpagos difusos pulsaram a oeste, saídos do nada, para além das nuvens nocturnas de tempestade, derramando um dia azulado sobre o deserto distante, as montanhas na súbita linha do horizonte hirtas e negras e lívidas como uma terra de outra natureza lá longe, cuja verdadeira geologia não fosse a rocha, mas sim o medo."

Alguns críticos comparam Meridiano de Sangue aos outrora célebres Westerns,  o que não é nada descabido, dados os inúmeros pontos de contacto existentes. No entanto, desengane-se quem espera encontrar o western tradicional entre as páginas deste livro. Cormac McCarthy não se guia pelas clássicas dicotomias westernianas. Na sua obra não há heróis nem vilões, o bem não se opõe ao mal, a violência não serve um propósito nobre, a honra e o companheirismo não são mais que meras quimeras, nem os "civilizados" são a antítese dos bárbaros. Pense, caro leitor, naqueles filmes sinistros mas belos que são exibidos dentro da nossa cabeça durante os sonhos. Meridiano de Sangue pertence a essa estranha estirpe.


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