Au Lapin Agile, Pablo Picasso, 1905 |
Num livro intitulado A Descrição da Infelicidade, o escritor alemão W.G.Sebald escreveu esta observação curiosa:" [...] o flâneur burguês alegava ter consciência de que as suas aventuras amorosas uma vez por outra o fariam correr riscos de vida e saúde não despiciendos, de modo que, numa espécie de autopunição heróica, o prazer ombreia com a morte."
Para obter o prazer desejado, o flâneur burguês - essa figura emblemática do século XIX - estava disposto a colocar o seu destino ao dispor dos ventos insondáveis da sorte e do azar, tendo total consciência do que daí poderia advir. Este pequeno excerto de Sebald é muitíssimo significativo, pois permite-nos captar as dissemelhanças existentes entre as sociedades antigas e as sociedades actuais no modo como ambas experienciam o prazer. Tornou-se um lugar-comum caracterizar ideologicamente as sociedades actuais rotulando-as de hedonistas. A busca incessante pelo prazer é uma realidade empiricamente verificável em praticamente todo o lado. Factores como a consolidação da democracia enquanto regime político global, o desenvolvimento económico e o progresso tecnológico, potenciaram certamente a adopção de uma filosofia de vida marcadamente hedonista. No entanto, parece-me que o modo como nos relacionamos com a experiência de prazer é bastante diferente do modelo seguido pelo flâneur burguês de que fala Sebald. A principal diferença entre o hedonismo antigo e o hedonismo contemporâneo assenta na hiper-racionalidade deste último. Adoptámos, através de exaustivas campanhas ideológicas, uma "ética" segundo a qual os prazeres devem ser vividos com uma determinada lógica, racionalidade, segurança e desprendimento afectivo. Cada momento de prazer possui, logo à partida, certos limites que não podem ser transpostos.
Slavoj Žižek, filósofo esloveno, costuma abordar recorrentemente nos seus livros o tema do hedonismo de trela curta dos nossos dias. Na opinião dele, a ideologia dominante prescreve o convite ao prazer (juntamente com a respectiva fruição), mas sem a propriedade "maligna" que tantas vezes é uma parte constitutiva desse mesmo prazer. A existência de café sem cafeína, de coca-cola sem açúcar, de chocolate sem gordura, de cerveja sem álcool, de amor sem nos apaixonarmos (love without falling in love), são alguns dos exemplos que Žižek dá recorrentemente para ilustrar a adulteração a que o conceito de prazer está a ser sujeito. É evidente que continua a haver excepções que, como diria Mário Cesariny, caem verticalmente no vício: consumidores de drogas duras, alcoólatras, alguns praticantes de desportos radicais, entre outros, são alguns dos casos mais óbvios, sendo que todos eles habitam num gueto ideológico que se encontra de costas voltadas para o hedonismo frouxo da actualidade. Veja-se, por exemplo, a cruzada lançada sobre os fumadores nas últimas duas décadas. A pouco e pouco, fomo-nos tornando incapazes de entender e de aceitar que exista alguém capaz de não se deter perante os malefícios do tabaco. Não percebemos o porquê de as pessoas se enclausurarem no interior de um prazer que, no fim de contas, as pode levar à morte. Já vai longe o tempo em que a indústria cinematográfica exaltava, através dos seus heróis, a beleza estética do acto de fumar. Em 2014, a exibição da ópera Carmen, de Georges Bizet, foi cancelada por parte de uma companhia de ópera australiana (West Australian Opera) devido à circunstância de haver personagens que fumam no decurso de Carmen. Trata-se de um exemplo extremo de cedência ao politicamente correcto, é certo, mas evidencia claramente o espírito da época em que vivemos.
Como já foi dito inúmeras vezes, a saúde, a segurança. o bem-estar e a tepidez afectiva, tornaram-se os deuses da era contemporânea. Talvez George Steiner esteja certo quando afirma que o fracasso das ideias utópicas terá deixado em nós a "nostalgia do absoluto". A humanidade não consegue viver sem adorar um Deus, seja ele qual for, por isso os deuses remediados que arranjámos correspondem à intemporal necessidade humana de conferir a alguns valores a marca do absoluto.
Dito isto, quais são as consequências que decorrem da transformação do prazer enquanto experiência? Em A Gaia Ciência, Nietzsche alertou para a necessidade de reunirmos forças tendo em vista o retorno de valores tipicamente clássicos, como a virilidade, a coragem e o heroísmo. Segundo ele, os riscos e perigos a que voluntariamente nos entregamos são absolutamente indispensáveis para conhecermos o sabor da felicidade: "Porque, acreditai-me, o grande segredo para colher a existência mais fecunda e o maior prazer é viver perigosamente. Construí as vossas cidades sobre o Vesúvio. Enviai os vossos berços para mares inexplorados. Vivei em guerra com os vossos semelhantes e convosco mesmos". Nietzsche tem razão. Se tentarmos remover o perigo de todas as actividades humanas, iremos fatalmente soçobrar no pântano da mediocridade e da pequenez. O perigo e o prazer estão presos por um nó indesatável, e não me parece que ganhemos algo em tentarmos desatá-lo.
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