Assim Nasceu uma Língua, do linguista Fernando Venâncio, é um ensaio rigoroso e interessantíssimo sobre as origens da língua portuguesa. O propósito cimeiro desta obra assenta na tentativa de, citando o autor, " localizar, no tempo e nas formas, o que alguém chamou «o primeiro gemido» do idioma." Tudo é feito com esmero, humor e espírito científico, nunca cedendo à ortodoxia engajada - esse tumor que tantas vezes impede que participemos num debate sério, coerente, racional e imparcial. Como manda a tradição, vou começar pelo princípio, tentando resumir os principais elementos constitutivos do pensamento de Fernando Venâncio.
No entender de Fernando Venâncio, existe uma coincidência bastante infeliz na história de Portugal. Segundo os dados existentes, o primeiro documento redigido em língua portuguesa data de 1174 (Pacto entre Gomes Pais e Ramiro Pais), século esse em que, como é sabido, Portugal se constituiu enquanto nação. O facto de o Reino de Portugal ter despontado na mesmíssima época em que foram escritos os primeiros textos, levou e leva "muito boa e informada gente" a concluir que o nascimento da língua portuguesa teve lugar no mesmo momento em que Portugal deu os primeiros passos na qualidade de entidade política. Trata-se de uma associação errada, explica-nos o autor. Para Fernando Venâncio, carece de sentido a ideia de que a língua portuguesa nasce abruptamente, de um modo quase mágico, com o nascimento do Reino de Portugal. Por definição, uma língua resulta de uma intensa prática no domínio oral, que é generalizada e estendida ao longo de muitos anos, sempre de maneira lenta. As línguas não se impõem, vão-se impondo.
A nossa língua terá surgido bastante mais cedo do que é geralmente aventado: "as nossas histórias da língua, depositárias amiúde duma ficção colectiva, imaginam a transição do latim para o nosso idioma consumada em um ou dois séculos antes de iniciar-se a escrita, pelo ano 1200. Ora, tudo indica que, muito antes, talvez mesmo por volta do ano 600, já a nossa língua atingiu um estádio irreversível, desenvolvendo e sedimentado as principais características que a individualiza no conjunto das línguas da Península Ibérica."
E então, qual foi o berço da língua portuguesa? A posição de Fernando Venâncio é claríssima nesta matéria, sendo um dos grandes temas de Assim Nasceu uma Língua. Dou a palavra ao emérito autor: "esse idioma que, por volta de 1200 surge na escrita assenta em estruturas de tal envergadura e tal complexidade que exigiram séculos de circulação oral. O único nome que cabe atribuir-lhe é galego." Para a linguística portuguesa mais esclarecida (palavras do autor), Portugal, ao fazer-se independente, limitou-se a continuar a utilizar a língua herdada: o galego. Esta verdade, quiçá chocante para alguns, é abordada pelo autor recorrendo à ironia mais divertida: "[...] a simples ideia de que, algum dia, um idioma estrangeiro possa ter sido a língua de Portugal é-nos insuportável." Deixando de lado o nacionalismo e o orgulho pátrio, o certo é que "até ao termo do século XIV (1400), é impossível separar linguisticamente a Galiza do Norte de Portugal até ao Douro", uma vez que, observa Venâncio, "morfologicamente e sintacticamente, galego e português são tão semelhantes, ainda hoje, que pode presumir-se que as diferenças na Idade Média eram predominantemente de natureza lexical." As afinidades existentes entre "o galego e o português de 1400 eram incomparavelmente mais semelhantes que os actuais modelos de língua português e brasileiro."
Para além da temática atinente à origem espácio-temporal da língua portuguesa, importa saber a partir de que processos se desenvolveu o português. Como é do conhecimento de todos, o idioma português deriva, em parte, da grande raiz linguística latina. A partir do latim, germinaram diversas outras línguas - como a língua italiana, francesa, espanhola, catalã, galega e, como foi dito, a portuguesa. Ora, qual foi o evento de ruptura responsável pela transição do latim para o português? A resposta do professor Fernando Venâncio é inequívoca: a queda das letras "L" e "N" quando situadas entre vogais. Em nenhuma língua românica este fenómeno foi tão impactante quanto na nossa: " [...] o desaparecimento em massa do l e do n intervocálicos toma feições verdadeiramente impressionantes, com drásticas consequências para o idioma." Na opinião do linguista Ivo Castro, citado neste livro, "o acto de nascimento da nossa língua" reside precisamente na síncope das letras "L" e "N". Talvez a apresentação de alguns exemplos nos ajude a entender melhor este curioso fenómeno. O latim dolere é transposto para as principais línguas românicas da seguinte maneira: em espanhol dolor, em francês douleur, em italiano dolore. Ou seja, o "L" intervocálico é conservado em todos os casos apresentados, excepto no idioma português, onde o equivalente do latim dolere é dor. O latim salire originou o espanhol salir e o italiano salire. No nosso idioma, temos sair (mais uma vez, o l desapareceu). Outro exemplo: o latim voluntate levou ao espanhol voluntad, mas em português a palavra equivalente é vontade.
Também na letra "N" vemos casos análogos. O latim moneta produziu o espanhol moneda, o francês monnaie e o italiano moneta. Todos possuem o "N" entre vogais, menos nós. Nós possuímos moeda. O vocábulo latim venire fez surgir o espanhol venir, o francês venir e o italiano venire. Nós temos o vocábulo vir. Portanto, estamos perante algo que configura um padrão: "a primeira constatação é a da regularidade destes mecanismos. Eles atingem uma imensidão de casos, efectivamente centenas deles, e fazem-no - não obstante a complexidade do processo envolvido - quase sem uma distorção, como se dirigidos por uma lei implacável."
Muitos outros fenómenos são escalpelizados em Assim Nasceu Uma Língua: a rápida metamorfose da língua portuguesa, de 1400 a 1450, ocasionada pela subalternização da nobreza poderosa de Entre-Douro-e-Minho, tendo sido espoletada no período posterior à batalha de Aljubarrota, evento esse importantíssimo na reconfiguração do xadrez político e na vitória do "eixo Coimbra-Lisboa" - leal a D. João I, mestre de Avis.
O abundante ditongo ão, cuja dicção tanto tortura os estrangeiros que tentam aprender português, tem lugar de destaque ao longo das páginas deste livro, assim como a "castelhanização" da língua portuguesa ocorrida entre 1450 e 1730, consubstanciada na importação de um conjunto enorme de vocábulos espanhóis. Também são analisados aspectos como a relação especial, quase fraternal, entre as línguas galega e portuguesa, as disputas nos círculos linguísticos galegos (relacionadas com a aproximação, ou não, ao português), algumas especificidades do idioma português, e a espantosa etimologia de determinadas palavras.
Enfim, o leitor desejoso de saber mais sobre esse instrumento precioso e fascinante, usado todos os dias por milhões de pessoas, e que se chama língua portuguesa, terá em Assim Nasceu Uma Língua, de Fernando Venâncio, um excelente guia e ponto de partida.
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