O Soldado Švejk, ilustração de Josef Lada |
À semelhança de várias obras-primas da literatura do século XX, O Bom Soldado Švejk, de Jaroslav Hašek, é um livro sem final, incompleto. Dono de uma existência desregrada e atribulada, Jaroslav Hašek morre a 3 de Janeiro de 1923, sem nunca cumprir o projecto literário a que se tinha proposto, designadamente escrever seis volumes do seu magnum opus O Bom Soldado Švejk, tendo morrido pouco antes de completar o quarto volume.
A narrativa de O Bom Soldado Švejk pode ser dividida em dois momentos: no primeiro momento, acompanhamos o soldado Švejk (lê-se xeveique) envolvido em mil e uma aventuras pelas ruas de Praga, na alvorada da Primeira Guerra Mundial; no segundo momento, Švejk parte para a frente de combate nos territórios da Europa Oriental, sendo esta a parte mais substancial do romance.
Quem é Švejk? Švejk é, fazendo uso das suas próprias palavras, um idiota: "Na tropa fui reavaliado por estupidez e uma comissão especial declarou-me oficialmente idiota. Sou um idiota oficial." Devemos acolher esta inaudita confissão com alguma reserva. Talvez Švejk seja um completo idiota, talvez seja apenas um chico-esperto que se faz passar por idiota para ludibriar aqueles que com ele confraternizam. Ambas as opções são igualmente verosímeis. A verdade é que não é possível atingir os recessos da alma do soldado Švejk, dada a sua natureza insólita e intrincada. Feito este preâmbulo, é importante ser referido que O Bom Soldado Švejk não é exactamente um livro sobre a guerra e os seus horrores, até porque nele não é feita nenhuma descrição de uma batalha. A nós, leitores, não nos chega o som de um único tiro disparado por entre as páginas da obra de Jaroslav Hašek.
Podemos ler O Bom Soldado Švejk à luz da velha dicotomia superfície-profundidade. À superfície, estamos claramente perante um romance com um forte pendor humorístico, aparentemente ligeiro; entrando nas camadas mais profundas, apercebemo-nos que O Bom Soldado Švejk é uma sátira de cunho político que, ainda hoje, quase 100 anos volvidos desde a sua publicação, continua sem uma ruga, jovem e actual. Com isto não quero dizer que a camada profunda suplanta a camada superficial; ambas coexistem de um modo totalmente harmonioso, e é desse antagonismo que provém a originalidade desta obra.
Acima de tudo, a particularidade que mais se destaca em O Bom Soldado Švejk prende-se com o seu espírito anárquico. Poucas obras terão desmontado tão eficazmente o exercício de autoridade por parte das instituições militares, religiosas e civis - com especial ênfase para o corpo militar.
Um dos aspectos brilhantemente conseguidos de O Bom Soldado Švejk é a maneira como Jaroslav Hašek subverte os poderes instituídos. Nesse grande mosaico de etnias e de línguas que foi o Império Austro-Húngaro, Hašek satiriza impiedosamente, recorrendo à alucinada e fascinante verve do soldado Švejk, as mazelas enraizadas nos vários sectores da sociedade austro-húngara: a hipocrisia da Igreja Católica (tema esse com mais de dois mil anos), a balbúrdia e o autoritarismo puramente irracional presentes no seio das forças armadas da "Tríplice Aliança", a ideologia militarista, patriótica e imperialista - carregada de elementos xenófobos e anti-semitas.
Em contraponto a este lodaçal fétido e pouco recomendável, temos Švejk. Švejk funciona como um antídoto - e serve também de manual de resistência - em relação a este panorama miserável que o circunda. A filosofia de vida professada por Švejk assenta nos princípios do "estou-me cagandismo". Perante os mais desbragados insultos e ordens absurdas provenientes da cúpula militar, o soldado Švejk limita-se a encolher os ombros, sorrindo com bondade e candura em resposta à estúpida estupidez do mundo. Para quem acredita no poder da palavra, da linguagem - e Švejk acredita na palavra como poucos - a reacção à tirania não assenta no medo ou no desejo de vingança. A palavra é a arma eleita por Švejk para sabotar o "estado das coisas". A verborreia compulsiva de Švejk move o leitor para um turbilhão de pequenas histórias, repletas de detalhes rocambolescos, extravagantes, imorais, absurdos, desconcertantes e, acima de tudo, profundamente hilariantes. Na retaguarda da guerra, a preocupação principal do soldado Švejk consiste em contar uma história após outra com um fulgor nitidamente inesgotável, retirando do seu arquivo de memórias um vasto leque de pessoas, lugares, tradições, anedotas e acontecimentos, levando ao "desespero" os seus irmãos de armas.
Foi com pena e desolação que me despedi de Švejk. O dramaturgo e poeta alemão Bertold Brecht - talvez para combater as saudades que sentia do soldado Švejk - compôs uma peça de teatro na qual deu continuidade às míticas aventuras de Švejk, peça essa a que deu o nome de "Schweyk im Zweiten Weltkrieg", ou seja, "Švejk na Segunda Guerra Mundial". Compreendo bem a vontade, quiçá a necessidade, sentida por Brecht de prolongar a existência de Švejk, de não o deixar nas catacumbas do esquecimento. No meu entender, o soldado Švejk figura indiscutivelmente no panteão das grandes personagens da literatura universal.
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