No início do século XVIII, durante o reinado de Luís XIV, o Papa Clemente XI, na bula Unigenitus (de 1713), afirma explicitamente que a leitura da Bíblia não deve ser uma prática adoptada por qualquer pessoa. No entender do Papa Clemente XI, o conhecimento e o estudo dos textos bíblicos não era algo vantajoso para a maioria dos fiéis. Recorro a este pequeno apontamento histórico para ilustrar o grau de absurdo que pautou - e ainda pauta - o relacionamento entre os representantes da Igreja (falo exclusivamente da vertente católica) e os crentes. 300 anos volvidos desde a publicação da bula papel Unigenitus, já ninguém afirma que a Bíblia não deve ser lida, contudo, continua a existir no âmago da Igreja Católica uma incapacidade confrangedora de transmitir aos crentes - e até aos não crentes - o legado histórico-cultural do Cristianismo.
Imaginemos o seguinte cenário: o padre da nossa paróquia, para obter uma noção aprofundada do nível cultural dos "seus" fiéis, decide entregar a cada pessoa, no final da missa dominical, um questionário sobre alguns dos aspectos mais elementares da Bíblia. Nesse questionário constam perguntas como: Quantos são os Evangelhos? Quais são os nomes dos evangelistas? Como se chama o texto bíblico que descreve a origem do universo? Certamente que três quartos dos fiéis - e estou a ser optimista - não saberia responder acertadamente a nenhuma destas perguntas. A ignorância do católico português é grande, demasiado grande, e deveria envergonhar aqueles que representam a cúpula da Igreja Católica. Pode-se argumentar que o eixo central do Cristianismo reside na fé e na crença de cada indivíduo, desvalorizando-se a importância da bagagem cultural do crente. Para mim, semelhante perspectiva não faz qualquer sentido. Não consigo compreender como é que alguém pode desejar ignorar o corpo teórico e intelectual de que a sua fé é composta. Será que a fé não deve a sua existência à base teórica que a precede? Claro que deve. Então, qual é a substância de uma fé que não deseja conhecer-se a si mesma, que não deseja conhecer as suas raízes históricas, que não pretende dissecar-se? O problema da ignorância relativa aos assuntos da fé está longe de ser um pormenor irrelevante. A consequência mais directa do desinteresse intelectual dos crentes face à sua crença manifesta-se no modo estéril como o Cristianismo é vivido. Este é o problema de tantos e tantos cristãos: vivem atolados num Cristianismo mecânico, desprovido de espessura, simplista, hipócrita e inacreditavelmente boçal.
No livro A Ressurreição, de 1904, Liév Tolstói elaborou uma crítica demolidora sobre o modo perverso como o Cristianismo é entendido e praticado por quase toda a gente. O Cristianismo "anárquico" de Tolstói impedia-o de aceitar a existência de doutrinas religiosas que, no seu entender, nada tinham que ver com os mais básicos ensinamentos de Cristo. Atente-se nesta brilhante passagem de A Ressurreição: "E não passava pela cabeça de nenhum dos presentes, a começar pelo sacerdote e pelo director e a acabar em Máslova, que aquele mesmo Jesus, cujo nome foi tantas vezes repetido, sibilado, pelo sacerdote, louvando-o com toda a espécie de palavras estranhas, proibira precisamente tudo aquilo que ali se estava a fazer; proibira não apenas aquele palavreado verborreico e sem sentido, e aquela sacrílega feitiçaria dos padres-mestres sobre o pão e o vinho, mas proibira também da maneira mais determinada que umas pessoas se intitulassem mentoras de outras, proibira as orações nos templos, mandando que cada um rezasse em privado; proibira os templos, dizendo que viera para os destruir e que se deve orar não nos templos, mas no espírito e na verdade; e, mais importante, proibira não só que se julgassem as pessoas e se mantivessem na prisão, se torturassem, humilhassem e executassem, como aqui se fazia, como proibira qualquer violência sobre as pessoas, dizendo que viera para dar liberdade aos presos.
Também não passou pela cabeça de nenhum dos presentes que tudo o que ali se fizera era um enorme sacrilégio e um escárnio sobre o próprio Cristo, em nome do qual tudo isso se fazia."
Infelizmente, pouco ou nada mudou desde que estas palavras foram escritas. É quase revoltante observar a maneira como os fiéis continuam agarrados a práticas religiosas absolutamente estúpidas, que servem apenas para embrutecer (espiritual e intelectualmente) aqueles que nelas participam. Talvez o caso não fosse tão funesto se a Igreja se preocupasse em respeitar verdadeiramente os ensinamentos e a mensagem de Cristo. Mais do que ser um projecto de poder político-financeiro com pretensões absolutistas - e historicamente foi-o - o Cristianismo deve ser um projecto espiritual destinado ao aperfeiçoamento humano, nos domínios da ética, do intelecto e de todas questões basilares que atravessam a existência humana.
É necessário transmitir às pessoas que o essencial não é irem à missa para tentarem comprar o acesso ao céu por via de meia dúzia de avé-marias e pais-nossos; assim como não é essencial haver pretensos fiéis que usam uma ideologia para legitimarem os seus atropelos éticos privados dirigidos àqueles que os rodeiam. Por estranho que possa parecer, nem sequer a existência de Deus deve assumir um tamanho decisivo para um crente: no Budismo, por exemplo, a questão da existência de Deus é um tema desvalorizado e secundário, entendido como não essencial, e não consta que o vigor da fé de um budista saia beliscada por esse facto. A Igreja precisa de se reinventar, de encontrar novas formas de transmitir eficazmente a sua mensagem, de abandonar uma retórica vazia e, acima de tudo, precisa de abandonar a hipocrisia que grassa no seu interior e de tornar consequente a mensagem que apregoa, interessando-se realmente pela vida das pessoas. Aquilo que é realmente importante no Cristianismo resume-se a isto: estudar a mensagem cristã, interiorizá-la e tentar viver de acordo com ela, sempre de um modo sério, apelativo e inteligente.
No século XXI, o Cristianismo não pode sonhar com utopias de poder. Os tempos mudaram - felizmente - e não é sensato acalentar nostalgias gloriosas relacionadas com o poder da Igreja sobre a sociedade. Já não somos obrigados a professar algo em que não acreditamos, o que só pode beneficiar quer as pessoas, quer a Igreja. Se houver esforços árduos nesse sentido, o Cristianismo poderá entrar agora numa nova fase, uma fase onde o mais importante não passará por continuar a alimentar a máquina de poder eclesiástica, mas sim pela exploração da vocação genética da Igreja: ajudar as pessoas a viver melhor, tornando as suas vidas mais interessantes. A Igreja tem de saber explicar às pessoas o porquê de o materialismo desenfreado dos nossos dias não nos estar a dar a satisfação interior que nos foi prometida; tem de saber ajudar as pessoas a estruturarem os tempos difíceis (e todos os tempos são difíceis), através da adopção de um estilo, de uma fórmula de enfrentar o sofrimento; tem de saber introduzir cada um de nós, sem excepção, na busca de um sentido para as "coisas aqui em baixo"; tem de ser incansável na apologia da beleza e dos prazeres intelectuais; tem de ser capaz de nos treinar nas necessárias artes da paciência, da disciplina, do perfeccionismo, da tolerância.
A tarefa é tremendamente exigente, sem dúvida, mas talvez este caminho seja obrigatório para que a Igreja não seja consumida pela indiferença generalizada. Não é com conversas sobre o fogo do inferno, ou sobre o pecado original, ou sobre a alegada virgindade de Maria, nem é a repetir fórmulas encantatórias que só servem para desviar o crente do essencial, que a Igreja sobreviverá aos tempos que se avizinham. Na verdade, e é vital termos sempre isto em mente, o Cristianismo é muitíssimo mais valioso e importante do que os seus lamentáveis representantes têm dado a entender ao longo dos séculos.
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