Não há existência que não assente numa extensa série de logros. Alguns deles são-nos inculcados pela família, pela escola, pela religião ou pela comunidade em que estamos inseridos; outros são exclusivamente alimentados por nós mesmos, sem qualquer intervenção externa. Um dos logros mais importantes na estruturação da nossa realidade psíquica (e mesmo na realidade social que nos envolve) é a crença de que a felicidade é tanto mais intensa quanto maior for a sua relação com o esforço.
A teoria popularizada ao longo dos séculos tem sido esta: o sangue, suor e lágrimas do nosso esforço, dedicação ou trabalho - como lhe queiramos chamar - são peças fundamentais que nos permitem conhecer a verdadeira felicidade. Quantas vezes não ouvimos dizer que as "coisas só nos dão satisfação quando são conquistadas com esforço"? Inúmeras, creio eu. O problema é que nada disto é verdade. A minha posição vai no sentido contrário, isto é, o esforço não só não contribui minimamente para a felicidade como, provavelmente, pode até ser prejudicial para todos aqueles que pretendam senti-la. Com isto não quero dizer que o esforço seja irrelevante e que, por conseguinte, não deva ser valorizado (tudo aquilo por que vale a pena lutar implica uma determinada dose de esforço) ; o que eu digo é que não existe uma relação directa entre felicidade e esforço.
No que me diz respeito, eu raramente senti felicidade autêntica por ter cumprido esforçadamente um objectivo a que me votei. Nunca senti que a felicidade estivesse presente quando, por exemplo, alcancei um bom resultado num exame a que me dediquei de corpo e alma. Afirmar o contrário, ou seja, persistir na ideia de que o esforço conduz à felicidade não tem qualquer base empírica, mas tem um fundo moralista, fundo esse caracterizado por ser uma tentativa mais ou menos encapotada de trazer para o mundo das emoções algo que lhe é totalmente estranho - os deveres, as obrigações, a moral. Na verdade, quando alguém associa o esforço à felicidade o que está a fazer é prescrever aos outros um determinado modelo comportamental que eles devem adoptar. É precisamente o que os pais fazem quando tentam convencer os filhos de que o fruto do estudo árduo é a felicidade. Os menos ingénuos não acreditam nas palavras que proferem, mas dizem-nas porque pretendem conduzir os filhos na direcção que eles consideram ser a mais correcta, sendo a felicidade o isco usado para aliciar os miúdos.
Como toda a gente sabe, a felicidade é um estado psíquico que não é controlável a nosso bel-prazer, ao contrário do que é incansavelmente apregoado nos dias de hoje. Ignorar isto é desconhecer a essência das emoções e dos sentimentos. Uma emoção não se compadece dos nossos planos ou objectivos, por mais louváveis e justos que estes sejam. Pelo contrário, a experiência quotidiana mostra-nos que existe na felicidade uma natureza arbitrária que se furta a tudo aquilo que está para lá da sua interioridade. Este facto torna insensata qualquer ideia destinada a fazer-nos crer que existe na felicidade uma espécie de bonificação dada àqueles que se esforçam tendo em vista um determinado objectivo. Não há nenhuma evidência de que a felicidade apareça garantidamente por nos dedicarmos com afinco a algo. A lógica interna da felicidade não nos permite inferir que ao fazermos "A ou B" o resultado desembocará obrigatoriamente em Y. Isso seria pressupor que possuímos a chave da felicidade, o que é manifestamente falso.
Lembro-me de ter lido um pequeno texto do filósofo italiano Giorgio Agamben, intitulado "Magia e Felicidade", onde a certa altura é declarado que "o que podemos alcançar por nossos méritos e esforço não pode nos tornar realmente felizes. Só a magia pode fazê-lo." E ainda: "É uma desgraça sermos amados por uma mulher porque o merecemos! E como é chata a felicidade que é prémio ou recompensa por um trabalho bem feito!" Como se depreende das minhas palavras anteriores, subscrevo na íntegra as observações de Agamben.
Para mim, a felicidade não depende do mérito, nem da dedicação, nem existe como uma bonificação oferecida aos cidadãos exemplares. Nada disto tem que ver com a felicidade. A felicidade pura está sempre relacionada com os aspectos mais espontâneos da existência. Tal espontaneidade significa basicamente ignorarmos aquilo que nos vai acontecer - o tempo pertencente ao futuro - e é essa ignorância que nos torna especialmente receptivos às "altas exaltações da felicidade". Não é por acaso que o tédio é considerado um dos inimigos mortais da felicidade. O que é que nos acontece quando nos afundamos no pântano do tédio? Sabemos tudo, não ignoramos nada: sabemos exactamente com quem vamos conversar, sabemos as palavras que vamos ouvir e proferir, sabemos as emoções que nos vão visitar ao longo do dia, sabemos os lugares onde vamos estar, sabemos tudo. Este é, com efeito, o problema do conhecimento total: ao termos nas mãos o guião absoluto da nossa vida, o acesso aos domínios da felicidade é-nos fatalmente vedado.
A única felicidade digna desse nome deve a sua existência ao desconhecido, ao imprevisto, ao acaso, ao nada, à sorte. Se eu for forçado a construir a minha própria felicidade, o mais certo é não restar nada do próprio conceito de felicidade. Porquê? Porque a felicidade forçada, construída, não passa de um simulacro insípido e limitado da verdadeira felicidade.
Como escreveu José Tolentino Mendonça, a alegria não nos pertence, atravessa-nos. A felicidade é um hóspede que se aloja temporariamente no nosso interior e que depois parte, deixando-nos à janela a escutar os cascos das nossas esperanças que galopam ruidosamente pelas ruas abaixo.
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