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Force Majeure

Cena do filme Force Majeure

Gostamos de afagar a nossa consciência imaginando que também nós adoptaríamos um comportamento heróico e nobre se fôssemos confrontados com uma situação limite, in extremis. Quando as forças elementares e primárias da vida e da morte entram em cena, quantos de nós teríamos o poder de agir segundo as leis do dever e da moral? Poucos, atrevo-me a dizer. Dos fracos não reza a história, afirmou solenemente Camões. De facto, são os fortes que figuram nos manuais de história, não são os fracos. Mas a verdade é que o olhar histórico será sempre incompleto se não se debruçar sobre os fracos. Por muito que nos custe, a realidade não é um bloco monocromático. Quando arriscamos ir mais longe, quando penetramos na obscuridade, é natural que aí encontremos indecências, vilezas e fraquezas inconfessáveis, visto que é também dessa mixórdia que nós somos feitos.

Devo estas observações à circunstância de ter assistido recentemente ao filme Force Majeure (2014), do realizador sueco Ruben Östlund. Force Majeure é um filme sobre um casal sueco - Tomas e Ebba - que, juntamente com os seus filhos pequenos, passa cinco dias numa estância de esqui alpina. No segundo dia, o casal e a sua prole assistem, confortavelmente instalados num restaurante defronte das belas montanhas nevadas francesas, a uma avalanche controlada. Ao início, Tomas garante não haver qualquer motivo para preocupação, mas o pânico vai-se instalando à medida que a massa gigantesca de neve desce em direcção ao restaurante onde todos se encontram. A avalanche não chega a atingir o restaurante, há somente uma intensa névoa levantada pela deslocação da neve a preencher inteiramente a atmosfera. O lento dissipar da névoa revela, quer a Ebba, quer às crianças, uma pequena grande tragédia: no calor do momento, instigado pelo medo que tudo consegue, Tomas fugiu, abandonou mulher e filhos à sua sorte, reaparecendo apenas um pouco depois, aquando do desaparecimento da névoa, no momento em que a ameaça já se havia extinguido. A partir desta cena, o filme Force Majeure explora brilhantemente o dilema ético-existencial de Tomas, isto é, o drama de um indivíduo que assume um comportamento lamentável numa situação limite. 
     Numa primeira fase, Tomas lida com o sucedido recorrendo terminantemente à negação; mais tarde, existe uma negociação entre Ebba e Tomas no sentido de acordarem a mesma versão interpretativa do incidente ocorrido. Dadas as divergências interpretativas, consubstanciadas na incapacidade de Tomas em assumir que é culpado, em admitir que fracassou quando a família mais precisava dele, a situação de Tomas torna-se insustentável, levando à deterioração vertiginosa do relacionamento entre o casal. Ao reconhecimento de culpa por parte de Tomas não sobrevém qualquer forma de catarse; o que sucede a isso é o mero colapso emocional. Após a avalanche, a identidade de Tomas - entendida por si mesmo e pela sociedade que o circunda - sai implacavelmente metamorfoseada. 

Num dos momentos finais deste filme, há um episódio que ameniza a aparente atmosfera acusatória que o envolve. Durante a viagem de regresso a casa, num autocarro conduzido através das espantosas estradas alpinas por um atabalhoado motorista, Ebba emula o comportamento de Tomas durante o incidente da avalanche. Sai do seu lugar, avisa o condutor de que está a conduzir perigosamente, interpela-o para que este abra a porta e a deixe sair. Tomada pelo medo, Ebba acaba por sair do autocarro antes de todos os outros, esquecendo temporariamente os seus filhos e marido. No final, todos abandonam o autocarro de forma ordeira e serena. É neste ponto que o início e o fim de Force Majeure se cruzam na mesma bifurcação, bifurcação essa que aparece sob a forma de uma pergunta retórica: qual seria o teu comportamento no decorrer de um acontecimento extremo? Estarias à altura do deu dever?

Force Majeure é uma obra cinematográfica importante e interessante, que nos ajuda a reflectir sobre temas aos quais nem sempre temos a coragem de dedicar a nossa atenção.Tendemos a desviar o olhar da intrínseca fragilidade humana; tendemos a fazer vista grossa à incerteza de tudo (como escreveu Fernando Pessoa, "Em qualquer hora pode suceder-nos/ O que nos tudo mude"); tendemos a alimentar um desconhecimento mais ou menos profundo de nós mesmos. Uma das funções das arte é a de nos fazer repensar a nossa relação com o mundo e com nós mesmos. Em Force Majeure, Ruben Östlund consegue indubitavelmente provocar essa reacção no espectador lúcido, atento e receptivo.  


             

 



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