Nas vésperas do afogamento da aldeia de Vilarinho das Furnas, o cineasta português António Campos delegou a si mesmo a nobre tarefa de capturar um mundo condenado ao desaparecimento, tendo daí resultado a elaboração do documentário Vilarinho das Furnas. Quando António Campos chegou a Vilarinho das Furnas, em 1969, o cutelo já havia sido colocado no pescoço dos habitantes da aldeia, isto é, já todos sabiam que a construção da barragem de Vilarinho das Furnas iria ser realizada. Este facto outorga ao documentário o estatuto de "crónica de uma morte anunciada", pois é efectivamente a designação acertada para descrever o documentário de António Campos. Ao longo de doze meses passados no coração da aldeia, António Campos pôde lançar sobre ela o derradeiro olhar sobre os costumes, crenças e tradições dos seus habitantes, bem como dissecar o peculiar modo de funcionamento do regime agro-pastoril que por lá vigorava.
Situada no sopé da serra Amarela, mas já com o "dorso" voltado para a serra do Gerês e para o território espanhol, a singularidade de Vilarinho das Furnas foi o resultado de um conjunto de circunstâncias combinadas: a sua posição geográfica e respectiva orografia; práticas ancestrais ciosamente mantidas ao longo de séculos; rigorosa organização "socio-política" tecida em torno de ideais comunitários. Todos estes aspectos são devidamente identificados e representados na obra de António Campos, com especial destaque para a estrutura social e política adoptada pela população instalada em Vilarinho das Furnas.
Como se depreende facilmente do visionamento do documentário Vilarinho das Furnas, não podemos reflectir sobre a aldeia extinta recorrendo aos estereótipos usuais com que se analisa a vida nos meios rurais, sob pena de a empobrecermos e de lhe retirarmos toda a sua complexidade. Sem dúvida que a vida em Vilarinho das Furnas era dura, áspera e selvagem; sem dúvida que a pobreza existia; sem dúvida que o analfabetismo dos seus habitantes era enorme; e no entanto, havia algo no seu interior que a distinguia de muitas aldeias portuguesas (e não só portuguesas). Falo da organização "socio-política" da aldeia. Tal como nos é explicado no decorrer do documentário, a vida em Vilarinho das Furnas era estruturada e vivida de um modo profundamente comunitário. Não é que os seus habitantes respirassem apenas o mesmo ar; respiravam através dos mesmos pulmões. Todos os actos da comunidade se encontravam interligados. As vontades dos indivíduos, por mais díspares que fossem, eram inexoravelmente canalizadas para a coesão da comunidade, designadamente através de uma intensa cooperação entre vizinhos. A rigidez de princípios tornava bastante difícil a insurreição das várias partes envolvidas (os indivíduos) sobre o todo (a comunidade). A voz do narrador do documentário - um dos habitantes da aldeia - explicita a severidade do comunitarismo vivido em Vilarinho das Furnas. Passo a citar alguns exemplos mencionados por ele: "Ninguém pode vender gado sem o dizer [...] Todo aquele que não aderir às leis não será considerado como vizinho." E ainda: "Se se lhe virar um carro [àquele que não cumprir as leis] com mato ou lenha ninguém o pode ajudar a erguer [...] Se lhe morrer alguém em casa não tem ninguém que o ajude. Nem ir buscar o caixão ou chamar o padre. Se um animal se prender num local, onde seja preciso ajuda de pessoal, ele não o encontrará nesta povoação. Terá que o procurar fora da terra. Ninguém lhe prestará socorro. Nem mesmo um fósforo para acender o lume. Terá que ir buscar o lume fora da terra."
Para "nós", criaturas individualistas até à medula, pode ser um pouco difícil percebermos a razoabilidade de uma conduta que leva indivíduos a abdicarem da sua liberdade individual em nome de exigências sobre-humanas impostas pela comunidade. Não há uma resposta definitiva a esta dilema. O que deve ser feito? Pôr o indivíduo acima da comunidade? Priorizar a comunidade sobre o indivíduo? Todas as ideologias políticas têm de enfrentar este problema, pois é dele que nascem todas as questões subsequentes, quer falemos de cultura, de finanças ou de trabalho. No caso de Vilarinho das Furnas, o dilema político-existencial foi resolvido, bem ou mal, pondo a comunidade no pináculo das prioridades.
Falando de política, importa relevar outra particularidade que o documentário de António Campos explicita bem. Vilarinho das Furnas possuía um modelo governativo que lhe conferia uma certa autonomia face ao poder central e local. O núcleo de poder em Vilarinho das Furnas era representado por um juiz e seis deputados (são estas as designações correctas). O juiz, que era o chefe do governo, assegurava o cumprimento escrupuloso das leis internas da aldeia, ao passo que os deputados se ocupavam da criação e votação das mesmas. A duração do mandato exercido pelo juiz não podia exceder os seis meses, sendo nomeado outro juiz após o término do prazo, num sistema de presidência rotativa que faz lembrar o actual modelo de Presidência do Conselho da União Europeia. Os seis deputados eram eleitos pela população da aldeia, também de seis em seis meses e de modo rotativo. Ou seja, não é de todo exagerado afirmar que Vilarinho das Furnas foi um dos palcos daquilo a que hoje se dá o nome de democracia directa, dado o papel activo e directo de cada cidadão na tomada de decisões relacionadas com a sua aldeia e com a sua vida.
O documentário Vilarinho das Furnas termina com as palavras: "Morreu Vilarinho das Furnas, sob o manto de água que lhe deu vida." Assim foi. O "progresso" ditou o desaparecimento de um local quase único no panorama português. Os dividendos colhidos foram a produção de electricidade e o consequente "enriquecimento" do país. Os malefícios causados pela construção da barragem traduziram-se em perdas de vária natureza - perdas estéticas, ambientais e culturais. Alguns dirão que a destruição é inteiramente justificável e legítima quando o progresso económico está em causa; outros dirão que não se pode organizar uma sociedade obedecendo a uma lógica meramente economicista. Mas não vale a pena discutir isso agora.
O que interessa destacar é que a aldeia de Vilarinho das Furnas, tal como todas as coisas mortas, continua levemente viva de duas maneiras: a primeira manifesta-se no visionamento do interessantíssimo documentário de António Campos; a segunda tem lugar quando as águas da barragem de Vilarinho das Furnas baixam significativamente, deixando à mostra de todos o débil esqueleto das suas glórias passadas. Ambos os espectáculos merecem ser vistos.
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