Alberto Manguel |
No passado dia 22 de Agosto de 2020, o semanário Expresso publicou um ensaio do professor e escritor Alberto Manguel que ilustra, de forma inteligente, ponderada e sucinta, algumas das inquietações mais prementes da nossa época. Segundo o canadiano, cada época histórica possui um conjunto de tendências específicas que nos ajudam a caracterizá-la, a defini-la relativamente a outras que a precederam. Tal como nos ensinou o célebre historiador britânico Eric Hobsbawm, houve a era das revoluções, houve a era dos impérios, houve a era dos extremos; agora, no novo milénio, o sentimento predominante é o de que vivemos na era da vingança. É esta a tese principal do ensaio de Alberto Manguel.
Como sabemos, a História é um manancial de injustiças e de crueldades inomináveis. Hegel chegou ao ponto de afirmar que "as épocas felizes são páginas em branco no livro da História". Assim é. No entanto, há uma diferença significativa entre as vítimas da actualidade e as vítimas do passado, consubstanciada na maneira como as vítimas reagem ao sofrimento que lhes é infligido. Hoje, ao contrário do que sucedeu no passado, existe uma caixa de ressonância que acolhe e amplifica as angústias e as vozes de revolta de grupos historicamente oprimidos: mulheres, negros, judeus, homossexuais, entre outros. As suas vozes clamam por liberdade, igualdade e justiça, de um modo cada vez mais audível e feroz. Agora, citando Alberto Manguel, "as vítimas decidiram que o tempo de ser paciente chegou ao fim." Em múltiplos pontos do globo, milhões de pessoas enchem as ruas exigindo o fim da opressão institucionalizada que continua a ser exercida sobre os mais diversos grupos sociais. Infelizmente, estes momentos de revolta das massas podem trazer com eles um triste reverso: exige-se a justiça, mas pratica-se a injustiça; apregoa-se a liberdade de expressão, mas nega-se o direito à dissidência; defende-se o pacifismo, mas recorre-se ao confronto físico.
A violência ocorrida em manifestações do movimento "Black Lives Matters", particularmente nos Estados Unidos, serve de ilustração para a atmosfera de vingança que, na opinião de Alberto Manguel, caracteriza a nossa era. Cidades são postas a ferro e fogo, derrubam-se estátuas de figuras históricas e combate-se com violência as forças responsáveis pela manutenção da ordem. Como é natural, a intolerância gera intolerância, e nela é impossível a existência de um diálogo frutuoso entre as várias partes envolvidas.
Todos os projectos emancipatórios, mais cedo ou mais tarde, são inevitavelmente sujeitos a uma dificílima prova de fogo, podendo pender para um de dois lados: há aqueles que são capazes de resistir fielmente à sua ideologia, e há os outros - os que, pelo contrário, enveredam por uma estratégia de mimetização do comportamento daqueles que pretendem combater. O projecto comunista é paradigmático para compreendermos esta problemática. Como é que uma ideologia destinada a instaurar a igualdade entre todos os homens pôde descambar na barbárie tresloucada? Há um abismo de perplexidade que se abre diante de mim quando reflicto neste assunto.
A razão, diz-nos Alberto Manguel, é a nossa única esperança. Trata-se de uma esperança frágil e falível, sem dúvida, ainda assim é a única arma que podemos usar sem que dela advenham consequências funestas. Por isso, conclui o autor, se uma causa, "qualquer causa, for conduzida pela violência e pela raiva vingativa, sejam quais forem os motivos ou a indesculpável origem, o seu triunfo será sempre um triunfo da loucura." Lida com atenção, esta frase é todo um manual de civismo e de humanidade.
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