Thomas Bernhard |
Ao longo de quase uma década, entre 1975 e 1982, a "criança terrível" da literatura austríaca - Thomas Bernhard - publicou cinco obras dotadas de um óbvio cunho autobiográfico que, apesar de estarem normalmente reunidas num único volume sob a designação de "Autobiografia", nunca mereceram esse apodo por parte do seu autor. "A Causa" (1975), "A Cave" (1976), "A Respiração" (1978), "O Frio (1981), "Uma Criança" (1982), são livros independentes e autónomos entre si, mas capazes de constituírem um todo coeso, e é por via desse todo que entrevemos a infância e juventude de Thomas Bernhard, pois é exclusivamente desse período da sua vida que o autor nos fala.
É natural que o leitor se interrogue sobre o porquê de Thomas Bernhard ter escolhido escrever apenas sobre a infância e a juventude nos seus estudos autobiográficos. Há uma resposta a essa pergunta e é o próprio Bernhard que no-la oferece: "A cidade da infância (e juventude) não é uma questão arrumada, eu continuo a entrar nela com uma cabeça sem qualquer protecção e incapaz da mínima acção de defesa e com um ânimo completamente à sua mercê." Na perspectiva de Bernhard, a infância configura decisivamente os termos nos quais a existência de um indivíduo adulto assentará. É esta espécie de megalomania prepotente que caracteriza a infância. Aquilo que somos, aquilo em que nos tornámos, foi já definido durante o nosso período de formação, como normalmente se apelida a infância e a juventude. Nessa medida, afigura-se-me pertinente fazer menção ao célebre verso do poeta alemão Rainer Maria Rilke, em que ele diz - e tudo em Bernhard nos induz a pensar que ele subscreveria a ideia imortalizada em Elegias de Duíno - "não creiais que o destino seja mais do que a espessura da infância." Se o nosso destino (a nossa vida) não é mais do que a espessura da infância, o único caminho a trilhar é aquele que nos leva ao cerne indestrutível das coisas, para, quem sabe, dele podermos obter uma possível explicação e, por conseguinte, um possível rumo. Creio que é a esta luz que deve ser entendido o nome do primeiro volume da "Autobiografia" de Thomas Bernhard, intitulado A Causa.
Assim que o leitor inicia a leitura de A Causa, fica imediatamente patente o tom indisfarçavelmente bernhardiano da mesma. Não conheço nenhum escritor que ombreie com Bernhard no que concerne à brutalidade linguística e atmosférica que este consegue inculcar nas suas obras literárias. Tanto quanto eu conheço, Bernhard é mesmo um caso sem paralelo no terreno literário. Thomas Bernhard parece escrever como se quisesse dizer tudo recorrendo a um único fôlego, como se o grito fosse o único instrumento capaz de espalhar pela totalidade da superfície terrestre os incontáveis libelos proferidos contra o mundo.
Salzburgo - a cidade de Mozart - é o palco escolhido por Bernhard para desfiar as suas primeiras recordações em A Causa. No ano de 1943, Thomas Bernhard, então com 13 anos de idade, é admitido como aluno do internato da Schrannengasse. Nada foi tão marcante e excruciante para o jovem Bernhard como os anos de escola. No entender de Bernhard, a escola existia apenas como "um projecto de educação estatal-sádico-fascista", apostado em aniquilar (por vezes literalmente) os seres que nela eram obrigados a participar. Dou a palavra ao autor: "[...] durante todo o período dos meus estudos, tive de passar a maior parte do tempo com a ideia de suicídio, a isso arrastado pelo ambiente brutal, rigoroso e infame em todos os seus aspectos [...] Quantas vezes, centenas de vezes com certeza, eu andei pela cidade pensando só no suicídio, só na extinção da minha existência e onde e como é que eu havia de cometer o suicídio[...] E ainda: "O internato é para o recém-internado um cárcere requintadamente projectado contra ele e, portanto, contra toda a sua existência, construído de modo infame contra o seu espírito, no qual o director (Grünkranz) e os seus acólitos (vigilantes) dominam tudo e todos e no qual só o que se permite é a obediência absoluta e, portanto, a absoluta subordinação dos educandos, isto é, dos fracos aos fortes [...], e só o silêncio como resposta e a prisão no escuro."
A figura do já referido director do internato - o nacional-socialista Grünkranz - representa na perfeição a infâmia humana em estado puro: "[...] eu continuava a ter um medo cada vez maior do Grünkranz, que me esbofeteava onde quer que me encontrasse, sem qualquer motivo, dizendo o meu nome, ele aparecia, dizia o meu nome e dava-me uma bofetada, como se para ele esse acontecimento, isto é, do ponto de vista dele o aparecimento súbito da minha pessoa, onde quer que fosse, constituísse um pretexto óbvio para me esbofetear." Associado ao horror da escola, havia também o horror da guerra. Edifícios históricos e não históricos despedaçados pelos bombardeamentos das tropas aliadas, corridas constantes para os abrigos anti-aéreos, chamadas para a distribuição de bens alimentícios, mortos à deriva pelas ruas. Em suma, o desespero total.
Quando a guerra acaba, em 1945, o nazismo vê-se substituído pelo catolicismo, o que, no dizer de Thomas Bernhard, não representou uma transformação significativa na atmosfera lúgubre, reles e estúpida da cidade de Salzburgo. Falando concretamente de si e dos da sua geração, Thomas Bernhard afirma ter crescido entalado entre catolicismo e nacional-socialismo e por fim esmagado entre Hitler e Jesus Cristo "como decalcomanias para estupidificação do povo." As similitudes entre ambas as ideologias são exploradas abundantemente ao longo do manuscrito, ideia essa que o autor faz culminar na frase "tanto o nacional-socialismo como o catolicismo são doenças contagiosas, doenças mentais e nada mais do que isso."
Com apenas 15 anos, Bernhard decide abandonar os estudos e ingressar no mercado de trabalho, designadamente como ajudante num estabelecimento de comércio de géneros alimentícios, o que ocasiona uma reviravolta na sua vida: o desespero dos anos de escola cede o lugar à satisfação pessoal; o absurdo e ausência de sentido de tudo são deixados para trás. São então feitos vários elogios ao valor do trabalho, valor esse consubstanciado no carácter salvífico de que, na opinião de Thomas Bernhard, este se reveste. Ainda na mesma altura, Bernhard descobre os seus dotes como cantor e apaixona-se profundamente pela música. O impacto desta paixão foi de tal ordem que veio a reflectir-se muitos anos mais tarde no estilo adoptado enquanto escritor: assim se explica o uso desmesurado da repetição encantatória (à maneira de um refrão) e do eterno retorno às mesmas palavras, expressões e ideias.
Um dia, na sequência de uma gripe, Bernhard adoece gravemente e é internado no hospital. O hospital passa a ser o centro do seu mundo, um mundo no qual a senilidade e o desespero dos pacientes andam a par com a arrogância, a vileza e a insensibilidade dos médicos. Os médicos são, à semelhança dos professores, vistos como criaturas desprezíveis: "Entre cem dos chamados médicos raramente se encontra um médico verdadeiro, assim os doentes são sempre, de qualquer modo, uma comunidade condenada ao definhamento e à morte." Ou ainda: "a impotência e a estupidez de médicos que têm uma concepção da medicina completamente degenerada em negócio e que nem por um momento se envergonham desse facto escandaloso." É durante a longa estada no hospital que Bernhard contrai tuberculose. A tuberculose acompanhá-lo-á desde o início da idade adulta até à sua morte - em 1989.
Enfim, muitos outros aspectos desta obra-prima poderiam ser aqui destacados: a relação especial entre Bernhard e o seu excêntrico avô (a figura humana mais importante da sua vida); a mãe de Bernhard; os momentos quase inconcebíveis de auto-confissão; a orfandade deliberada a que o pai o votou; a relação tempestuosa entre Bernhard e a Áustria (Bernhard elaborou um testamento no qual proibia categoricamente a representação das suas peças de teatro em solo austríaco após a sua morte).
O universo de Bernhard não é de molde a agradar a qualquer leitor. Monótono como poucos (o que não é necessariamente uma crítica), dotado de uma misantropia violentíssima, carregado de obsessões profundas e inextinguíveis, sem medo de contemplar os abismos de que todos fogem, impelido pela necessidade de contar somente a verdade (sem olhar às consequências de tal "loucura") e apostado no uso de mecanismos hiperbólicos, vociferantes e alucinados para uma compreensão mais fidedigna da realidade: assim é o universo de Thomas Bernhard.
Goste-se ou não de Bernhard, o certo é que não é possível sentirmo-nos indiferentes ao tomarmos o pulso aos seus escritos. Não lhe ficamos indiferentes, assim como não ficamos indiferentes àqueles que nos puxam pelas mangas do casaco com uma persistência insuportável. Termino com uma citação que resume de um modo exacto a personalidade, a obra e a vida de Thomas Bernhard: "A minha existência toda a vida incomodou. Sempre incomodei, sempre irritei. Tudo o que escrevo, tudo o que faço é incómodo e irritação. Toda a minha vida enquanto existência não é senão incómodo e irritação permanentes. Por chamar a atenção para factos que incomodam e irritam. Uns deixam as pessoas em paz e outros, eu pertenço a esses outros, incomodam e irritam. Eu não sou pessoa para deixar em paz e não quero ter um carácter desses."
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